sábado, 14 de março de 2009

Para ler no banheiro 2 - Bandidos

Por Marcio Ortiz Meinberg

A fila interminável de carros desmotivava João Paulo. Ficar preso em um congestionamento às 18h30 não era seu ideal de sexta-feira, mas estava tão cansado da semana que aceitava encarar a bucha.
Pela rádio AM soube que a cidade inteira estava parada. Bufou e mudou de estação na esperança de uma segunda opinião. Depois da sexta opinião confirmar o trânsito lento, sintonizou em uma FM para ouvir uma musiquinha.
Foi quando reparou que a rua transversal estava livre. Não teve dúvidas e virou. Quase derrubou um motoboy, que passou xingando e buzinando. Seguiu pela rua até a esquina. Tanto a direita, quanto a esquerda estavam paradas.
Talvez na próxima! Não dava.
Seguiu mais uma. Deveria virar à esquerda, mas ela estava congestionada, ao contrário da direita. Seguiu por essa na intenção de inventar um corta-caminho.
Em sua busca pelo atalho, se perdeu. Andava por um bairro sem congestionamentos. Ao menos isso! Parou em um posto para pedir informação. Após ouvir as confusas explicações do frentista, notou que tinha saído muito de seu caminho.
Antes de encarar a volta, preferiu passar no banheiro. Pegou a chave e foi até o lado de trás do pátio. Abriu a porta emperrada e segurou a respiração por causa do cheiro. Os olhos arderam um pouco por causa da naftalina que havia no ar.
Deixou a água da pia escorrer por uns minutos antes de lavar o rosto. Olhou-se no espelho quebrado e arrumou o cabelo. Viu a privada, mas vacilou por causa da sujeira.
Havia um rolo de papel higiênico pendurado em um fio. João Paulo enrolou a mão com um monte de papel e limpou o assento da privada. Jogou o bolo de papel no lixo e repetiu a operação mais três vezes. Depois, forrou o assento com mais papel, não sem antes dar a descarga por várias vezes.
Criou coragem, abaixou a calça e sentou-se com cuidado para não molhar a barra no chão encharcado. Fez suas necessidades.
Apoiou os cotovelos nas pernas e colocou a cabeça sobre as mãos. Respirou fundo e ficou descansando nessa posição. Apesar da sujeira, sentia-se bem naquele banheiro. Estava isolado do mundo, alheio ao trânsito e a todos os problemas. Foi quando reparou que, pela primeira vez na semana, teve descanso. Irônico, descansar em um banheiro que ele nunca entraria se tivesse outra opção.
Continuou ali descansando por meia hora, longe das preocupações. Olhou para a porta e viu o trinco se movendo. Teria trancado a porta? A porta balançou de leve e o trinco voltou à posição original. Sim, estava trancada.
Coçou a testa e decidiu ficar mais um pouco. Alguém bateu na porta.
- Tem gente – gritou João Paulo sem levantar a cabeça.
Ouviu um barulho e olhou. Alguém tentava abrir o trinco e empurrava a porta com força. Mas ela não abriu.
João Paulo resolveu sair. Levantou-se e arrumou a calça. Estava entrelaçando o cinto quando alguém voltou a forçar a porta.
- Já estou saindo! Só vou lavar as mãos.
A porta balançou três vezes até que abriu com um estrondo. Um homem mal barbeado entrou.
- Qual é o seu carro?
- Meu carro? – estranhou João Paulo – Por que quer saber?
Antes de terminar a frase tomou uma coronhada na cabeça.
Quando acordou, a cabeça doía. Um ferimento na testa ardia. Ele passou a mão e sentiu um líquido quente, devia ser sangue.
Escuro!
Onde estava? Parecia uma caixa acarpetada. Estava escuro e fazia calor. Tinha dificuldades para respirar. A caixa se movia e balançava muito.
- Mas o que é isso?
Sentiu falta de ar e decidiu gritar.
- Socorro! Socorro! Me tirem daqui!
Continuou gritando, até que a caixa parou de repente. Com o movimento, ele foi jogado no fundo da apertada caixa. Dor!
Uma tampa se abriu e a luz entrou. Viu um poste e um semáforo. Onde estaria?
O homem mal barbeado apareceu e disse:
- Tá a fim de morrer? Fica bem quieto ai!
Tomou mais algumas coronhadas e desmaiou de novo.
Dessa vez acordou sentado. O ambiente não se movia, mas continuava escuro. João Paulo estava perdido.
Tentou recapitular o dia: o engarrafamento, o posto, o banheiro e o cara mal barbeado. Então percebeu que havia sido seqüestrado! A caixa devia ser o porta-malas de um automóvel. Talvez o seu próprio.
Mas por que ele seria seqüestrado? Não era rico nem nada. O carro era de luxo, mas por que não levaram apenas ele?
João Paulo tentou se mover e percebeu que estava amarrado com alguma fita. E estava vendado.
- Alô? Tem alguém ai? Alô?
Ouviu uma espécie de gemido.
- Tem alguém ai? – continuou gritando.
- Chiu! Fica quieto! – a voz estava muito próxima.
- Não sei o que você quer de mim, mas pegou o cara errado! Por favor, não me machuque!
- Fica quieto, senão eles vão ficar bravos! – respondeu a voz.
Um barulho de passos se aproximou. Ouviu um ranger de madeira e um movimento no ar. Alguém tirou sua venda.
- Você é louco? Quer morrer?
Quando os olhos se acostumaram, reconheceu o homem mal barbeado. Estavam em um barraco. Além deles, mais algumas pessoas amarradas e vendadas.
- Escuta aqui, meu irmão! Eu não tenho nenhum problema em te matar! Fica bem quietinho ai!
- Eu não sei o que você quer de mim – disse João Paulo – Mas pegou o cara errado. Eu não sou rico, leve o meu carro.
- O carro eu já peguei, otário. Agora quero discutir o resgate. Como você parece estar com pressa, pode ser o primeiro. Levanta ai!
João Paulo obedeceu. O homem cortou a fita com uma faca e o levou através da porta até o outro cômodo do barraco. Havia um monte de televisores, aparelhos de DVD e eletrodomésticos empilhados. Em uma mesa estavam armas, alguns papelotes de cocaína e uma porção de chaves e carteiras.
O homem foi até a mesa, pegou uma chave e olhou as carteiras.
- Pela foto, essa aqui é sua.
- É.
- “João Paulo” é o seu nome?
- É.
- Coincidência! Eu também chamo assim! Por que sua mãe te deu esse nome?
- Não sei. Nunca perguntei.
- O meu é por causa do Papa. Minha mão é muito religiosa e eu nasci quando ele veio pro Brasil.
João Paulo, a vítima, ficou em silêncio. Talvez o sentimento religioso da mãe do bandido pudesse salvá-lo.
- Toma – disse João Paulo, o bandido, enquanto lhe entregava o cartão do banco – Nós vamos no caixa-eletrônico. Se der tudo certo, eu te solto em seguidas! Mas você precisa ficar bem bonzinho!
Os dois saíram do barraco. Logo ali estava um carro com dois homens encostados.
- Entra ai! Você dirige. Se fizer alguma gracinha, eu te mato!
João Paulo obedeceu.
Ligou o carro e saiu dirigindo segundo as instruções do seqüestrador. Saíram da favela e chegaram em uma avenida movimentada.
João Paulo olhava os carros em volta, na esperança de que alguém percebesse o seqüestro. Só pensava em fugir.
Distraído, não notou que o veículo da frente freou por causa do sinal vermelho. Quando percebeu, apertou o breque com toda a força e o pneu cantou. Mas não bateu por pouco.
Olhou para o outro lado e viu uma viatura. Os policiais estavam olhando para ele.
- Se você tentar alguma coisa, te mato aqui mesmo! – disse João Paulo, o seqüestrador.
João Paulo, a vítima, só pensava em escapar. Mas como? Talvez acelerando feito louco! Talvez os seqüestradores ficassem com medo de atirar nele e sofrer um acidente. Talvez a polícia percebesse...
Nada! O sinal abriu e eles continuaram. Andaram mais um pouco e chegaram no caixa. Os dois homens ficaram no carro e os João Paulo desceram.
Havia uma mulher no caixa. Será que ele ia seqüestrar a mulher? Ela saiu e foi embora.
Entraram.
- Tira o estrato.
João Paulo enfiou o cartão, pediu o estrato e digitou os números.
“Senha incorreta”.
Respirou fundo. Colocou o cartão novamente, pediu o estrato e digitou. A máquina fez uns barulhos e expeliu um pequeno papel.
João Paulo pegou o papel e leu:
- Quinhentos e quarenta e três negativo? Vai tomar no cu!
- Calma! Eu tenho dois mil reais de limite.
- Tira logo essa grana!
João Paulo colocou o cartão, pediu para sacar tudo que o limite permitia e digitou.
“Senha incorreta”.
- Você tá querendo me foder? Te mato aqui mesmo!
- Calma! Eu posso tentar até três vezes!
- Você já errou duas!
- Mas como eu acertei depois, só vale uma. Fica calmo.
Colocou o cartão, tremulo. Pediu para sacar o dinheiro e, cautelosamente, digitou.
“Senha incorreta”.
Sem dizer nada, João Paulo levou a mão à cintura e colocou-a sobre a arma.
João Paulo colocou o cartão, pediu a grana e digitou.
A máquina fez um barulho assustador e ele quase enfartou de medo. O dinheiro saiu.
João Paulo pegou a grana e contou. Foram em direção ao carro e no caminho ele falou:
- Não tem nem mil e quinhentos! Isso é pouco! Precisamos de mais!
- Mas esse é o limite!
Tomou uma coronhada e desmaiou.
Acordou sentado. Tinha as mãos amarradas por uma fita. A venda estava torta e podia enxergar alguma coisa.
Estava de volta ao barraco. Olhou ao redor e viu que outras pessoas estavam na mesma situação que ele. Todos amarrados com fita e vendados. Eram cinco homens sentados e uma mulher deitada. Parecia machucada. Será que ela tinha sido estuprada?
Só de imaginar, João Paulo sentiu um enjôo.
Ouviu passos e a porta se abriu. João Paulo parou em frente a ele acompanhado por outro sujeito mal encarado. Esse não tinha ido no carro. Devia ser uma quadrilha grande.
- E ai, xará?
João Paulo fingiu que não enxergava e que não era com ele
- João Paulo?
- Sou eu.
- Preciso de uns dados seus. Telefone de casa e informações pessoais para sua família saber que o negócio aqui é sério.
João Paulo deu as informações solicitadas e o comparsa de João Paulo anotou tudo em um caderno.
- Como vamos fazer?
- A gente leva o japonês no caixa e enquanto eu estou tirando a grana dele, você liga e pede o resgate.
- Dez pau?
- É! Começa com 10 e se não der jogo, depois a gente negocia.
João Paulo e seu comparsa soltaram o japonês e o levaram para fora. João Paulo ainda voltou e disse:
- Tomara que a sua família goste de você! Senão vou ter que te matar! – E saiu de novo.
João Paulo ficou lá quieto. Sentado sem se mover, em silêncio absoluto.
- João Paulo? – alguém murmurou.
Ele continuou quieto
- João Paulo?
- Quem é? – sussurrou de volta.
- O caixa é longe?
- Sei lá. Depende do banco.
-O seu era longe?
- Era.
- Eu consegui soltar minhas mãos. Vou fugir enquanto eles estão fora!
O homem se levantou, foi até João Paulo e cortou a fita que lhe prendia as mãos com um prego.
- Vamos lá?
- Não! Você está louco! Podem ter outros bandidos de guarda!
- Vamos lá!
- Eu não vou!
- Alguém quer ir?
Silêncio.
O homem foi até a janela, olhou e pulou. Só ouviram o som dos passos correndo no concreto.
João Paulo ficou em silêncio absoluto e se arrependeu de não ter ido. Levantou e tirou a venda. Foi até a janela e olhou. Era alto, mas dava para pular.
Ouviu passos no outro cômodo. Pareciam correr!
Voltou para seu lugar, sentou, colocou a venda e pôs as mãos para trás como se estivesse amarrado.
Um homem abriu a porta esbaforido, olhou e gritou para fora:
- Tá faltando um! Eu disse que tinha um cara fugindo! Corre lá! Vamos atrás dele!
O homem fechou a porta correndo e, pelo som dos passos, saiu correndo.
Silêncio.
Dessa vez João Paulo não ia perder a chance. Levantou e tirou a venda. Foi até a janela e olhou. Ninguém! Pulou.
Dor! Ficou sentindo pé torcido. Logo se recuperou. Não tinha tempo a perder! Levantou e correu em direção aos prédios. Saiu da favela e continuou correndo.
Depois de correr por alguns quarteirões, João Paulo estava esbaforido. Parou um pouco para descansar. Ao longe viu um carro. Correu para o meio da rua e começou a acenar.
Conforme o carro se aproximava, mas João Paulo ficava com a impressão de que o conhecia. Quando já estava bem perto, percebeu que era seu próprio automóvel. Eram os seqüestradores!
Não pagou para ver. Correu de volta para a calçada e pulou um muro. Estava em um terreno baldio. Ouviu o cantar de pneus freando.
Correu sem rumo pelo mato até que chegou em um barranco. Desceu escorregando pela escarpa até chegar no plano. Continuou correndo até a rua.
Viu um táxi, abriu a porta de trás e entrou correndo. Abaixado no banco disse ao motorista:
- Moço, você precisa me ajudar! Eu fui seqüestrado! Tem uns bandidos atrás de mim.
- O que?
- Por favor, moço! Depressa!
O taxista ficou em dúvida, mas achou melhor dirigir. Foi seguindo pelas ruas, mas como não conhecia o bairro, acabou se perdendo.
- Procure ruas que subam! Do alto podemos ver a saída! – sugeriu João Paulo.
- Não se preocupe, eu tenho um guia de ruas – encostou o táxi.
No fim da rua surgiu um carro em alta velocidade. João Paulo se encolheu com medo de serem os seqüestradores. O carro passou, olhou para o táxi e foi embora, em alta velocidade. João Paulo levantou a cabeça e reconheceu. Era o seu carro!
- São eles! Vamos para o outro lado! Rápido!
O táxi fez a volta e quando estavam indo, o automóvel de João Paulo surgiu atrás novamente. Teriam percebido?
O taxista continuou andando com o carro atrás deles. Será que perceberam? Não, senão já teriam abordado o táxi.
- Dê a volta no quarteirão!
O táxi virou à esquerda e seguiu até a esquina. Virou de novo, mas o carro continuou atrás. Virou outra vez à esquerda. De fato estavam sendo seguidos. Eles suspeitavam de algo.
- Pelo amor de deus! Vamos embora desse bairro! Procure uma avenida movimentada!
- Estou tentando! Mas estamos perdidos!
- Ali! Uma viatura!
O taxista virou na rua indicada. Era mesmo uma viatura! Estacionou atrás dela.
Quando o carro dos seqüestradores se aproximou, deu um sinal com o farol. E a viatura foi embora. João Paulo suava frio.
Vagarosamente o carro passou ao lado do táxi. João Paulo se encolheu no banco. Os homens olharam, mas não o viram. O carro se foi.
O taxista estava pálido de medo. Rodaram mais um pouco e chegaram em uma avenida. João Paulo desceu em frente a uma padaria e correu para o orelhão. Tremia. Ligou para casa.
- Alô? – voz de mulher.
- Filha? É o papai! – tremia de tensão, estava quase chorando de emoção.
- Papai! Que susto que você me deu! Acredita que ligaram aqui dizendo que você foi seqüestrado e queriam resgate de 10 mil reais?
João Paulo tremia.
- E o que você fez?
- Eu imaginei que era trote, né? E disse que você valia muito mais e que eu só pagaria se o resgate fosse um milhão de dólares!!! – e começou a rir.
João Paulo tremia tanto que deixou o fone cair.

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