sábado, 14 de março de 2009

Admito


Eu duvidei
Mas antes de buscar outros caminhos
Senti saudades

Primeiro ciúmes
Que logo ignorei
E tentando resistir
Eu confessei

Na minha dúvida
Duvidei de duvidar
Felizmente acordei

Admito

As 3 Sombras

Por Marcio Ortiz Meinberg

Às seis da manhã, Nelson acordou sobressaltado.
Ofegante, sentou-se sobre a cama com o coração acelerado. Passou a mão na testa molhada de suor e esfregou os olhos. Sentia a cabeça doendo. Estava cansado, exausto, mas tinha perdido completamente o sono.
Levantou-se de uma só vez e sentiu o joelho. As costas também doíam. Andou dois passos pelo quarto a fim de esticar o corpo. Sentia-se tonto.
Abriu a porta e entre na saleta minúscula de seu casebre. Era um cômodo quadrado com quatro portas, uma em cada parede. Sem janelas. Num dos cantos ficava um velho sofá de madeira com almofadas estragadas. Do outro lado, uma mesa bamba apoiava um rádio velho que nunca funcionava direito. Nessa parede estava pregado um calendário de borracharia, ou oficina mecânica, com mulher nua e tudo mais.
Nelson foi até o banheiro e abriu a torneira. Esperou a água escorrer um pouco para limpar o cano enferrujado e enxaguou o rosto. Com a mão molhada, limpou o pó que sujava o espelho quebrado com cuidado para não se cortar. Olhou para o seu reflexo. Viu seus olhos vermelhos, a barba esbranquiçada por fazer, o papo saliente que começava a surgir com a idade. Apesar de ralo, cabelo está desgrenhado e precisava de um pente. Como não dispunha disso no momento, apenas se penteou com as mãos molhadas.
Sentiu a garganta seca raspando.
Saiu do banheiro e entrou na porta ao lado da mesa bamba. Estava na cozinha. Abriu a geladeira e pegou uma garrafa sem rótulo que continha água. Bateu a porta da geladeira, que não fechou por causa da borracha gasta. Nelson colocou a garrafa sobre uma mesa redonda branca e pressionou a porta da geladeira até que fechasse. Num armário suspenso de madeirite pegou um copo de requeijão que havia sido reutilizado e encheu de água.
Bebeu tudo em um só gole.
Em um pequeno cesto pegou um pão velho e começou a comer.
Depois de comer, tomou mais um copo d’água e guardou a garrafa na geladeira. Novamente teve de pressionar a porta para que fechasse.
Voltou para a sala em passos arrastados e saiu pela porta maior, que dava para fora.
Foi ofuscado pela luz do sol, que brilhava no céu apesar de enevoado. Nelson andou pelo pátio de terra laranja irritado com os latidos histéricos de um cachorro. Foi até o matagal no terreno baldio que ficava ao lado de seu casebre e gritou algo como “passa!” ou “chispa!”.
Os latidos histéricos continuavam. Entre eles, Nelson reconheceu os latidos roucos de seus dois cachorros. Deviam estar protegendo o território de um cão intruso.
Os latidos ressoavam na cabeça de Nelson, que doía. Fora da casa estava mais quente do que dentro. Resolveu entrar.
Virou-se para a casa e começou a andar. De repente, o matagal do terreno baldio se transformou em uma selva tropical. Nelson parou de andar e mesmo de costas, podia sentir que o clima ficara muito mais quente e úmido.
Ouvia claramente os sons dos bichos e das plantas típicas da floresta amazônica. Um mosquito veio zunindo próximo de seu ouvido e picou seu pescoço. Ele deu um tapa no pescoço tentando impedir o inseto de sugar mais sangue.
Cautelosamente virou-se e encarou a selva recém-surgida no terreno vizinho. Engraçado, já tinha estado ali antes...
Via claramente um grupo de pessoas andando fora da trilha. Eram dois homens e uma mulher. Estavam maltrapilhos, disfarçados como caboclos nativos da região. Um dos homens estava ferido e sua perna sangrava. Os outros dois o auxiliavam a caminhar.
A mulher vestia um chapéu de palha e trazia a tiracolo um rifle maior do que os que traziam os outros dois.
Nelson ouviu passos e olhou bem para o fundo da selva, foi quando viu a patrulha de soldados. Todos maltrapilhos. Tinham um caboclo como guia.
Nelson via claramente os três fugitivos e a patrulha, mas eles não se viam, pois estavam longe uns dos outros. E não viam Nelson, porque ele não estava lá.
Os dois homens e a mulher conseguiram descer um barranco até um ribeirinho. O ferido aproveitou para beber água. A mulher encheu um cantil e os três aproveitaram para descansar.
Foi quando a patrulha dos soldados apareceu no topo do barranco.
Nelson ficou lá parado em pé assistindo ao dramático combate.
Os sons dos disparos secos e quase ritmados dos rifles apenas eram quebrados pelos ecos das rajadas das metralhadores.
A diferença numérica entre os dois grupos era gritante.
De repente, dois cachorros saíram de dentro da selva e correram na direção de Nelson. Um calafrio subiu por sua espinha. O combate desapareceu e a selva voltou a ser o matagal do terreno baldio.
Nelson se abaixou e acariciou os cachorros.
- O que que vocês tavam latindo?
Os dois vira-latas abanavam os rabos. O preto e maior dos cães olhava para o dono com a língua de fora. O menorzinho e bege também ficou com a língua de fora, encarando o dono. Mas não responderam.
Nelson suspirou. Procurou um maço de cigarros amassado no bolso. Colocou um cigarro torto na boca e acendeu com um fósforo. Deu dois ou três tragos e jogos no chão.
Tossiu.
- Malditos cigarros vagabundos!
Continuou andando pelo pátio de terra laranja. Olhou para o céu de nuvens sujas e ficou incomodado com o calor logo cedo. Estava quente e abafado. A tarde ia ser pior. Não chovia há muito tempo.
Um menino de dez anos apareceu no pátio. Usava uma camisa velha de algum time de futebol desconhecido. Estava suja e furada. O garoto descalço se aproximou de Nelson com olhar curioso.
Nelson gostava de ficar sozinho com seus cachorros. Aquele menino era uma das poucas companhias que apreciava.
- Oi – disse o pequeno.
Nelson ficou em silêncio, acariciando o cachorro bege.
- O seu rádio voltou a funcionar.
- Não – respondeu Nelson.
- Precisa concertar, né?
- Acho que a pilha acabou. Se for assim, não precisa concertar.
- Onde você compra pilha?
- Na cidade deve vender.
- Mas você nunca vai na cidade. Como vai comprar?
- Eu posso resolver ir, um dia desses.
- Se você quiser, eu vou pra você! – o garoto pareceu se animar com a idéia – Gosto de ir na cidade!
- É...
- Sem o rádio, não vai dar pra saber dos jogos de futebol!
Nelson ficou em silêncio e percebeu que um homem veio da estradinha em direção à casa. Ele achou que era algum conhecido, mas quando o estranho chegou perto, viu que não sabia dele. Mesmo assim, o rosto era familiar.
- Olá, moço. Desculpe aparecer aqui a essa hora, mas eu preciso de uma ajuda.
O menino se aproximou de Nelson e disse:
- Acho que ele não é daqui.
- Não sou mesmo. Na verdade moro na capital e estou hospedado numa casa perto do riacho.
- Meu pai mora perto do riacho. Ninguém mais mora lá perto!
- Ah, é? Onde está seu pai, garoto? – o homem fez a pergunta encarando Nelson, como se esperasse que ela a respondesse.
O menino se moveu para trás de Nelson, ficando protegido por suas pernas.
- Olha, moço, você disse que tinha um problema – disse Nelson apreensivo – Como posso ajudar?
- Ah, claro! Eu estava consertando o telhado da casa em que estou hospedado e precisava de uma escada. Você não teria uma pra emprestar?
- Hum! – Nelson fez uma cara de pensativo.
Andou um pouco pelo pátio de terra laranja e voltou até o estranho.
- Olha, moço, escada eu não tenho, mas atrás da minha casa tem umas tábuas que podem servir para você subir no telhado. Basta pregar uma na outra e sai uma boa escada improvisada.
Dessa vez foi o homem que fez uma cara de pensativo. Parecia desconfiado, como se achasse que era mentira. Nelson ficou incomodado com a expressão do rosto do forasteiro. Será que ele duvidava dele?
O homem andou pelo pátio de terra laranja e deu a volta na casa. Examinou as tábuas e separou algumas.
- Eu tenho um martelo em casa – disse Nelson
- Será que você pode trazê-lo aqui?
- Claro – respondeu baixinho enquanto voltava para casa.
Depois de procurar e achar o martelo. Nelson foi até os fundos da casa e entregou-o ao estranho.
O homem estava conversando com o garoto. Junto a eles estava um cachorro amarelado e bem magro. Deve ter sido o animal que provocou a latição pela manhã. O menino parecia ter gostado do cachorro.
- Qual é o nome dele? – perguntou o garoto.
- Não tem nome.
- Posso dar um nome?
- Pode, mas se eu não gostar ele vai continuar sem nome.
- Posso ficar com ele?
- Não. Ele terá que ir comigo. Ele é que protege a minhas coisas.
O homem percebeu a sobra de Nelson e se levantou.
- Obrigado pelo martelo e as tábuas, moço. Na minha casa tenho pregos. Vou até lá terminar o serviço.
- Você vai levar o martelo?
Não se preocupe, eu já o trago de volta.
O forasteiro notou que Nelson não ficou muito satisfeito em deixar o martelo ir.
- Então espere aqui. Eu vou buscar os pregos e faço o serviço aqui mesmo. Assim não preciso levar o martelo.
Nelson respondeu ficando em silêncio. O homem seguiu pela estradinha de terra por onde tinha vindo e sumiu após passar por umas árvores.
- Você está bem?
Olhar distante.
- Você está bem?
- Ãh? Claro – disse Nelson ao garoto.
- Você está com uma cara estranha.
- É que eu lembrei do meu pai
- Aquele moço parece seu pai.
- Não. Nem um pouco. Mas a visita dele me lembrou do meu pai.
O menino ia perguntar como a visita lembrou de seu pai, mas logo o estranho voltou com os pregos.
O homem se pôs a trabalhar enquanto era observado atentamente por Nelson e pelo garoto. Martelou bastante e pregou duas tábuas a uma terceira. Ficou como uma espécie de banco.
O sujeito colocou as tábuas marteladas em pé e subiu em cima para ver se estava firme. Tremeu um pouco e bambeou, pois uma perna era maior que a outra.
Nelson não gostou daquilo. Parecia serviço mal feito.
- Não sei se ficou bom – disse.
- Por que não?
- Sei lá! Fico preocupado.
- Tem alguma coisa errada? Prefere fazer você mesmo?
- Não, não tem nada errado. Apenas fico preocupado.
- Se não há nada de errado, não é preciso ficar preocupado.
A resposta era lógica. Nelson aceitou aquilo e esqueceu o assunto.
- Obrigado pelo martelo e pelas tábuas, moço – disse o estranho entregando o martelo nas mãos de Nelson – Sua ajuda foi muito importante.
- De nada. Qualquer problema pode vir aqui pedir ajuda.
O homem ficou quieto por uns instantes, como se não tivesse entendido o comentário, ou como se procurasse uma resposta adequada para dar.
- Espero não ter que voltar aqui.
Nelson achou bom que o forasteiro não pretendia voltar. Na verdade, só tinha falado aquilo por educação. Não que tivesse algo contra ele, na verdade nem o conhecia. Nem pretendia. Acontece que Nelson gostava de ficar sozinho com seus cães. Por isso morava naquela cidadezinha tão pequena, tão longe de tudo.
- Seu Nelson, você conhecia esse moço? – perguntou o garoto
- Acho que sim.
- Você não sabe se conhece?
- Não tenho certeza.
- Como ele pode morar perto do riacho se não tem casa por lá?
- Não sei
- Por que na hora que ele não foi na direção do riacho? Ele foi pro outro lado!
- Talvez fosse outro riacho – respondeu coçando a cabeça.
- Mas não tem outro riacho por aqui!
Nelson suspirou e concordou silenciosamente com um movimento de cabeça. Seu rosto carregava uma expressão melancólica.
Algumas galinhas apareceram por no pátio. O garoto saiu correndo atrás delas. Parecia já ter doze anos.
As costas de Nelson voltaram a doer. Entrou em casa e sentou no sofá velho de almofadas estragadas. Tentou ligar o rádio, mas só havia estática.
Deixou ligado e foi para a cozinha. Aproveitou alguns restos de comida que havia na panela e esquentou uma refeição. Comeu o alimento gordurento e sem gosto. Lavou a panela e as louças da pia. Deixou tudo de molho e voltou para a sala.
O rádio continuava a tocar estática num chiado bem baixinho. Mexeu na antena cm esperança de conseguir algo.
Nada! Desistiu.
Desligou o rádio e foi até o calendário colado na parede. Ficou olhando a modelo pelada do cartaz, que parecia posar em uma oficina mecânica, ou borracharia. Procurou uma caneta e marcou o dia oito de outubro de 1973.
Ficou olhando a data do cartaz. O dia estava certo? Sim, era o dia oito de outubro. Mas o ano estava certo? Seria oito de outubro de 1973? Não tinha mais certeza.
Quando acordou hoje cedo, Nelson sabia e tinha certeza que o ano era 1973. Agora não tinha mais.
Guardou a caneta no baú do quarto onde ficavam alguns livros velhos. De repente estranhou o silêncio do lado de fora. Os cachorros, em geral tão barulhentos, estavam numa quietez absoluta.
Foi de novo para o pátio. Caminhou um pouco, chamando pelos cachorros, mas eles não atenderam. Ficou em silêncio tentando ouvir os latidos.
Nada! Apenas silêncio.
Foi andando em direção à pequena estrada de terra. Desceu a rua assobiando.
“Rua”! Se aquilo pudesse ser chamado de “rua”! Mais parecia uma picada circundada por um fechado matagal. A sofrida mata estava ressecada pela aridez da estação das secas.
Continuou pela “rua” sinuosa que descia.
O sol ainda estava mais forte. Uma breve brisa o refrescou por um instante, mas logo se foi e o calor voltou.
Parou de assobiar e continuou pela “rua” torta. Os cachorros haviam desaparecido.
Será que tinham cansado dele? Teriam encontrado uma casa com mais comida? Com um dono mais amoroso?
Talvez. Da mesma forma que eles chegaram – de repente, um depois do outro – poderiam ter ido embora, juntos.
Tentou mais uma vez chamar os cachorros.
Nada! Apenas a brisa que bateu um pouco mais forte.
De uma trilha no meio do mato o garoto apareceu de novo.
- Você viu meus cachorros?
O garoto ficou olhando para ele em silêncio. E respondeu bem baixinho, quase inauditível:
- Não...
Mais uma vez o vento balançou os galhos secos. Nelson assobiou e gritou pelos cachorros, mas o garoto o puxou pelo braço e disse bem baixinho:
- Não pode fazer barulho!
Os galhos se moveram com o vento e estalaram.
- Eu preciso encontrar os cachorros – respondeu Nelson enquanto descia a rua chamando pelos cães.
- Não pode fazer barulho! – repetiu o garoto. Seus olhos pareciam tremer, como se estivesse com medo.
- Por que não pode fazer barulho? Preciso encontrar os cachorros!
- Foi o homem que disse!
- Que homem? O que apareceu de manhã?
- Não – o garoto respondia com um tom de voz tão baixo que Nelson mal podia ouvir.
- Então quem foi? Diga!
O menino olhou para os lados como se procurasse algo. Estava claramente assustado. Aproximou-se dele e, como se revelasse um segredo proibido, sussurrou:
- Foi o homem de verde...
- Homem de verde?
O garoto ficou encarando, sem dizer uma palavra. Teria 14 anos? O menino se virou, correu e sumiu no mato.
Nelson pegou o maço amarrotado e, com um fósforo, acendeu um cigarro torto. Continuou descendo a rua. Assobiou e gritou pelos cães. O matagal respondeu com mais silêncio.
O mato foi diminuindo e a estradinha foi ficando mais larga. Até que o mato desapareceu e Nelson estava num imenso e ensolarado descampado. Uma lufada abafada levantou a poeira laranja do chão e irritou seus olhos. Ele lacrimejou e os esfregou com cuidado. O vento parou e a nuvem de poeira se assentou de volta ao chão.
Nelson continuou andando pelo descampado enquanto chamava os cães e assobiava. Parou ao lado de uma árvore retorcida e tossiu engasgado com a fumaça do cigarro vagabundo.
- SILÊNCIO!
A voz surgiu do nada e se impôs imperativa. Nelson tossiu de novo.
- Não pode fazer barulho!
Nelson olhou ao redor e do lado da árvore estava um homem de porte atlético. Vestia uma jaqueta e calças verdes.
EU MANDEI FAZER SILÊNCIO!
Sem entender nada, Nelson disse:
O que? Por que tem que fazer silêncio?
VOCÊ É SURDO?
Não, eu só queria entender...
Então, CALA A BOCA!
Nelson ficou em silêncio encarando o homem de verde. Olhou bem nos olhos dele e sentiu a respiração.
EU MANDEI FICAR QUIETO!
Ele continuou em silêncio, olhando para o homem
Nelson sentiu o vento forte. O ar subiu por suas pernas, trazendo mais poeira. Quando o vento balançou seu cabelo, uma nuvem laranja cegou sua visão. Voltou a enxergar sentindo os olhos ardendo, um gosto de terra na boca e dificuldades para respirar.
O homem de verde havia desaparecido. O garoto também. Não havia sinal dos cachorros.
O sol estava mais fraco. Brilhava no horizonte concedendo um tom róseo ao céu. Algumas nuvens escuras surgiam ao longe.
Nelson desistiu dos cachorros e resolveu voltar para casa. Iniciou seu retorno pelo descampado, sendo seguido pelo vento. Continuou pela rua enquanto o matagal voltava a se fechar.
O mato não estava calmo como na vinda. Os galhos balançavam agitados. O vento realmente estava forte e a mata se movia como se estivesse viva.
Nelson saiu da estrada próximo de sua casa. Foi quando o silêncio se instalou de novo. O vento ficou totalmente quieto. Tudo parado. Nem uma folha se movia. Ele parou e escutou.
Ao longe ouvia um farfalhar. O som, único, correu em sua direção e deu a volta no terreno. O matagal se agitava pelo som, que se aproximou rapidamente. E cercou Nelson. O vento forte balançava tudo. Então começou a chuva.
As gotas grossas caíram sobre o homem, a terra e o mato. As nuvens escureceram por completo o céu poente.
Em poucos momentos Nelson já estava encharcado. As chuvas vieram. Mas já era época de chuvas? Não seria estação das secas? Nelson nem sabia mais que dia era. O cheiro de terra molhada subiu pelo ar, misturado com o mato.
Nelson saiu correndo, tropeçando nas enormes poças de lama. Chegou em casa todo molhado e sujo. Entrou na sala e tirou os trapos encharcados. Se enxugou com um pano velho e vestiu uma bermuda velha. A chuvarada fazia um enorme barulho do lado de fora.
A violência com que as gotas batiam na telha produzia um forte chiado. O vento balançava as portas e janelas.
De dentro do quarto saiu o garoto. Dezesseis?
- Seu Nelson, a casa tem goteiras!
A presença do garoto na casa era estranha, mas ele estava certo: a casa tinha goteiras. Nelson foi até a cozinha e pegou algumas panelas. Espalhou pela sala nos locais em que a água caia.
Um som metálico das goteiras nas panelas se somou ao chiado da chuva que vinha de fora.
Por instinto, Nelson olhou a paisagem escura da janela. Um relâmpago clareou a cena e iluminou o rosto do vulto que observava do lado de fora.
Uma terrível dor, misturada com um calafrio abalou Nelson enquanto o trovão rugiu. O vulto desaparecera.
Tremulo, Nelson sentou no sofá. Respirava com dificuldade. A porta balançou violentamente. Ele teve medo de olhar.
De repente abriu.
Do lado de fora, imóvel, o vulto olhava para ele enquanto era momentaneamente iluminado pela luz branca de um raio.
Nelson rezou para que ele desaparecesse nas sombras como fizera antes.
Mas, quando o trovão rugiu de novo, ele ainda estava lá.
Entrou na sala. Encharcado, molhou todo o chão.
O homem saiu pela porta e deixou uma enorme poça d’água no chão.
Nelson tremia. Estava encolhido no sofá. A chuva continuava castigando as telhas. O matagal se movia ameaçadoramente.
Do quarto surgiu o garoto. Dezessete anos? Saiu pela porta sem fazer um ruído. Ignorou a presença de Nelson.
O garoto seguiu em direção à estrada e a cada passo ficava mais velho. Parecia não se molhar.
Seu cabelo cresceu vagarosamente até os ombros e, de repente, diminuiu até ficar raspado.
Um jipe parou e ele entrou. Sumiram na estrada.
Nelson tremia no sofá. Olhava pela porta aberta a chuva lá fora. Encolhido em posição fetal, ele chorou.

Felicidade


Eu consigo definir o significado da felicidade

Como uma situação em se tem tudo o que precisa

Mesmo tendo nada ou muito pouco

 

Como uma vez na praia

Deitado no colo da amada antes do pôr do sol

Ou aquela tarde na piscina com os amigos

Ainda talvez numa noite de domingo

Em que pedimos pizza e uma coca-cola tamanho família

MELANCOLIA


Existem momentos que fico tão triste

E sinto vontade de retornar para minha terra natal

O problema é que esse lugar não existe

Trata-se de uma cidade de novela regional

Com trilha sonora do Milton Nascimento

Cujas noites são enluaradas

E assombradas por um lobisomem

 

No final da tarde a agradável brisa fresca

Me arrepia os pêlos do braço

E o cheiro da grama molhada

Compensa os mosquitos esbarrando em nossos corpos

 

Tenho saudades dos amigos que nunca tive

E daqueles belos tempos que nunca existiram

Mundos e fundos


Dirijo com uma mão só
enquanto a outra se apóia na janela aberta
O vento bagunça meu cabelo
Não é um conversível
mas o teto solar cumpre esse papel
Poderia ver as estrelas
mas mantenho os olhos fixos no horizonte ao final da estrada

Estaria com meus óculos escuros
mas já é noite

Naquele bar a cerveja é gelada
Bebi muitas conversas por lá
Hoje não conheço ninguém
então não vou pagar pra entrar

No som toca um intricado bebop
provavelmente Charlie Parker
Sempre acho que é Charlie Parker quando o jazz é intricado

Na mesa dos fundos
tomo um duplo 12 anos
Na mesma mão seguro meu charuto
Lentamente a fumaça vai subindo até se espalhar no teto baixo
Enquanto isso
as pessoas entram
as pessoas riem
as pessoas dançam
as pessoas saem

Não sei pra onde vou
nem se quero chegar lá
O lugar que queria ir já não existe mais

As notas do piano gotejam sobre mim
e me lembram que não tenho casa

O ritmo dos tambores diminui
O ataque aos pratos dá lugar a um arrastado e repetitivo chiado
Não, isso não é bebop

Estou na praia
pelo menos é o que diz a brisa fresca
O chiado do mar nos fundos confirma a tese
Conversamos noite afora
Atiro as bitucas de cigarro nos fundos da piscina vazia

Eu odiava aquela cidade
mas sinto saudades

Naquela noite não rolou nenhum beijo
mas foi tão bonita
Da que rolou não tenho lembrança alguma
Ainda teremos outras lembranças como essa 

No final da festa

Quando os convidados começam a se retirar

Já um tanto quanto bêbados

A música toca mais baixa ao fundo

 

Fiquei sozinho no terraço

Sentindo a brisa da madrugada

E lembrando daquela tarde inocente

Quando podíamos ser o que quiséssemos

Antes do destino nos forçar

Nos tempos em que ainda não éramos

Aquilo que sempre tememos

Para ler no banheiro 3 - Balada

Por Marcio Ortiz Meinberg

Luiz entrou correndo no banheiro. Baixou as calças e atendeu ao chamado da natureza. Fez um ridículo som de sanfona e sentiu um cheiro horroroso. Aos poucos a dor de barriga foi aliviando.
O maldito remédio tinha feito mal ao intestino. Talvez não devesse ter misturado cerveja com vodca. Enfim, a causa não importa, apenas o resultado.
Justamente hoje que tinha criado coragem para puxar conversa com Simone! E o pior, o papo ia bem, ela parecia afim. Luiz era tão tímido e nunca tomava a iniciativa de xavecar uma mina, mas exatamente quando conseguiu, sentiu que precisava ir ao banheiro.
Não era uma vontade qualquer: seu intestino parecia ter criado vida. Tudo se mexia em sua barriga. Ele sabia que, não importava quanta força fizesse, aquilo escorreria por sua calça.
Foi uma questão de escolha, ou Luiz passava por idiota saindo correndo no meio da conversa, ou passava vexame ao sujar as calças em frente à moça. É melhor fugir e viver para lutar outro dia. Fez opção pela primeira e correu.
Atravessou a sala, empurrou um amigo, esbarrou em uma garota desconhecia, que derrubou um copo e xingou Luiz. O banheiro do andar térreo estava ocupado e tinha fila. Sentiu um melado quente na cueca.
Não podia esperar! Correu pelo corredor e subiu pelas escadas. A festa acontecia na casa de seu amigo Carlos, então ele sabia onde ficavam os banheiros. Ufa!
E assim ele chagara ao banheiro.
Quando a dor de barriga cessou, Luiz resolveu voltar. Ao se levantar percebeu que não foi rápido o suficiente. A cueca estava marrom. Imunda!
Suspirou inconformado. Certamente a essa hora Carlos já estaria urubuzando Simone. Ele sempre foi afim dela, mas nunca teve chance. Entre os amigos Carlos era conhecido como o “valete”, a carta que sempre segura a “dama”, enquanto o “rei” não chega. Resumindo, Carlos era o chato que insistia em xavecar as minas que nunca ficariam com ele, quanto isso atrapalhava os que tinham chance.
Agora isso já não importava. Por mais que Carlos fosse inconveniente, Luiz não tinha do que reclamar, pois estava preso ali no banheiro. Que fazer?
A cueca estava imprestável, valia mais a pena jogar fora. Luiz se limpou com todo o cuidado, pois corria o risco de sujar a calça quando se vestisse sem cueca. Então percebeu que não corria esse risco. A calça já estava suja. Parte do liquido pastoso escorrera por ela.
Carlos estava com sorte, pois não seria incomodado tão cedo. E agora, Luiz? Tirou a calça e atirou a cueca no lixo. Passou um tempo e verificou as calças.
Pegou uma toalha de rosto, molhou com água e passou na sujeira da calça para limpá-la. Olhou bem e percebeu que o lado de fora também estava sujo. Que bosta! Literalmente.
Procurou alguma coisa para vestir no cesto de roupa suja. Apenas peças femininas. A única opção era lavar a calça. A música alta do andar de baixo encobriria o som da água e ninguém perceberia. Após uns minutos a calça estaria seca e Luiz poderia sair do banheiro e pegar uma emprestada de Carlos.
Era um bom plano, mas faltava pôr e prática. Colocou a calça na pia e abriu a torneira. Esfregou o sabonete até fazer espuma. Colocou a calça novamente sob a água.
Alguém tentou abrir a porta. Luiz ficou imóvel, em absoluto silêncio. Quem seria? Como era o banheiro do andar de cima, só podia ser o Carlos. Continuou em silêncio para tentar descobrir quem era.
- Também está ocupado? – uma voz de mulher.
- Parece que tem alguém tomando banho. Tem barulho de água corrente – outra voz de mulher.
Luiz percebeu que tinha esquecido a torneira aberta. Não valia a pena fechar, era melhor fingir que estava no banho.
- Mas o Carlos disse que ninguém ia subir nesse banheiro!
- Deve ser alguém da família. Para tomar banho, né?
- Eu achei que os pais dele tinham ido viajar.
- Sei lá! E a Simone? Você viu que piranha?
- Se liga! Ela só pode estar bêbada! Ela NUNCA beijaria o Carlos!
- Ela beijou?
- Não! Bom, eu não vi se beijou, mas do jeito que ela está se jogando nele vai acabar beijando.
As vozes foram diminuindo e sumiram no som da música. As duas meninas tinham descido.
Luiz só pensava em Simone. A maldita tinha enchido a cara bem no dia em que ele estava impossibilitado. Cretina!
Só faltava essa! Carlos, o valete, ia acabar pegando a mina no lugar de Luiz. Era preciso fazer alguma coisa. Tinha que sair dali. E rápido!
Continuou lavando a calça. Colocou sob a água e esfregou mais uma vez com o sabonete. Após algum tempo conseguiu deixá-la em estado aceitável. Fechou a torneira.
As vozes voltaram e uma delas tentou abrir a porta.
- Continua fechada!
- Por que você não vai lá embaixo?
- Você mesma falou que está um nojo! Além disso, está a maior fila.
- Não está tão sujo assim! É que a Simone vomitou bem ao lado da privada!
- Credo! Será que o Carlos vai ter coragem de beijar ela depois de vomitar?
- Ela beijou ele!?!
- Eu acho que não, mas um dos meninos disse que beijou!
- Puxa, quem estará no banheiro? Está demorando tanto!
- Deve ser alguém passando mal! – risos.
- Será que tá vomitando ou é diarréia? – mais risos.
- Bate e pergunta! – risos histéricos.
- Vai ver que a Simone está trancada com o Carlos ai dentro! – mais risos histéricos.
Os risos desceram a escada.
Luiz estava louco da vida. Por mais bobo que Carlos fosse, ele bem poderia se aproveitar do estado de Simone. Pilantra! Precisava sair do banheiro com urgência, então voltava ao jogo e salvaria Simone de virar piada por ficar com Carlos.
No entanto, para que Luiz pudesse sair do banheiro e intervir no “romance”, era necessário estar vestido e, para isso, precisava da calça. De preferência seca!
Pendurou a calça estendida na porta do box. Agora era só esperar. Sentou na privada e ficou olhando para ela. O maldito jeans ia demorar milênios para secar! Enquanto isso Simone estava indefesa nas garras de Carlos. Talvez ele já tivesse se aproveitado dela. Invejoso filho da puta! Tantas mulheres na festa e ele foi bem na que Luiz gostava. Bastardo!
Luiz deu um soco na parede. Machucou a mão. Ficou olhando a calça pingar. Será que ia demorar muito? Mais de uma hora, no mínimo!
Passos na escada! Alguém corria pelo corredor. Uma cabeçada na porta.
- Blergh! – som de vômito!
Um líquido repugnante escorreu por baixo da porta. Fantástico! Não podia ficar melhor.
- Simone?
Ou podia?
- Você se sujou toda! – era a voz de Carlos.
Pilantra!
- Vem comigo. Tem um banheiro no quarto da minha mãe.
O corredor ficou em silêncio. Só se ouvia os sons da festa e o barulho da música. Alguma coisa de vidro se quebrou no andar de baixo.
Luiz levantou, pegou a calça e torceu na esperança de secar mais rápido. A pendurou novamente e continuou esperando. Sentou-se na privada e abaixou a cabeça. Fechou os olhos e mergulhou nos pensamentos. Sem querer cochilou.
Acordou assustado. O coração batia acelerado. Olhou para a calça, levantou e torceu novamente. Pendurou e voltou para a privada. Que vida injusta!
Passos no corredor.
- Esse banheiro continua trancado. Se tiver alguém ai, ou dormiu, ou morreu. Faz horas que está fechado.
- O Carlos falou que tem outro banheiro aqui no quarto da mãe dele.
- Onde está o Carlos? Ele e a Simone sumiram faz uma hora!
- Imagina! Acabei de ver os dois na cozinha!
As vozes sumiram com o som da porta fechando. Alguns minutos depois o som da porta abrindo revelou as vozes novamente.
- Quer dizer que ela não beijou ele?
- Ele bem que tentou, mas ela estava tão breaca que nem conseguia se manter em pé!
- Ah! Ah! Ah! Ela vomitou nele?
- Isso eu não sei!
As vozes desceram novamente. Abaixou a cabeça e fechou os olhos. Estava com sono.
Acordou com vontade de urinar. Aproveitou que já estava na privada. A barriga e o intestino não doíam mais. Irônico! Agora que já estava na privada o intestino não doía mais!
O som da música estava mais baixo. O barulho dos convidados também. Parecia fim de festa.
Luiz verificou a calça, mas ainda estava úmida. Voltou a sentar na privada. Estava impaciente. Perdera a festa. Talvez tivesse perdido Simone. Mas não havia nada que pudesse fazer senão esperar.
Alguém subiu as escadas correndo, tentou abrir a porta e bateu desesperadamente.
- Abre ai! Abre ai, porra! – era uma voz masculina.
Luiz ficou quieto e fingiu que não ouviu.
O sujeitou tentou abrir o trinco, bateu mais um pouco e desistiu. Desceu correndo as escadas.
Confinado no banheiro, Luiz se resignou a abaixar a cabeça e fechar os olhos. Dormiu.
Quando acordou a casa estava em silêncio. Nenhum som, nenhum barulho. Não havia música. A festa acabou, Luiz! Devia ter dormindo mais de uma hora.
Pegou a calça e percebeu que a mancha marrom não tinha saído, mas que tinha ficado mais discreta. Vestiu, notou que ainda estava úmida e, como estava sem cueca, sentiu frio.
Abriu a porta do banheiro. A casa estava escura e vazia. Caminhou até o quarto da mãe de Carlos e, para seu alívio, a cama estava arrumada.
Foi até o quarto de Carlos para pedir uma calça emprestada. Empurrou a porta e tateou na escuridão. Achou um interruptor e acendeu a luz. Havia roupas espalhadas no chão. Entre elas, peças de lingerie.
Olhou para a cama e viu os corpos nus e entrelaçados: Carlos e Simone.
Filho da puta! Vagabunda! Dormiam profundamente e abraçadinhos.
Tirou a calça suja e jogou no chão. Pegou a calça de Carlos e vestiu.
Saiu da casa com raiva dos dois traidores. Pelo menos aprontara uma boa para Carlos. Quando Simone acordasse, veria a calça suja e pensaria que era de Carlos. Além de nunca mais olhar na cara dele, com certeza ela ia espalhar para todo mundo sobre o Carlos cagão. Com sorte ele ainda ganharia um apelido!
Luiz foi embora feliz. E nem se lembrou que na etiqueta da calça suja estava escrito seu nome e sobrenome. Só ficaria sabendo no dia seguinte, quando Simone começasse a espalhar.

O Retorno

Ao entrar em casa antes da meia-noite pela primeira vez em uma semana,
senti como se voltasse ao lar depois de anos ausente.

E as memórias do curto tempo em que passamos juntos
brilhavam tão vivamente como se ainda fossem cotidianas.

Quase senti saudades da casa de sua amiga
e pensei em me despedir deles,
apesar de que eles não se vão,
apenas você que se foi.

O tempo passa

Foi na minha sala
Enquanto atiçava a lareira
Que em meio às brasas e ao fogo enxerguei aquela tarde
Na praia onde tudo começara

Na sala da minha casa
Ouvindo a gravação de um excelente concerto
Me recordei daquela noite e daquele céu cheio de estrelas
E do violão em roda

Recostado na poltrona
Fumei meu cachimbo e contemplei algumas lembranças esfumaçadas
Daqueles dias de luta sem vitória
Que antecederam essa maturidade de glória

Pela janela

Naquela noite agradável
Enquanto todos riam na sala
Fui para o quintal sentir o vento

E olhando para o campo
Quando estivéssemos juntos
À luz da lua
Vislumbrei todo um futuro

Um ano depois
Evitei estar novamente entre os risos
E em espírito voltei ao quintal
Lembrei do futuro hipotético

E senti saudades
Mas não voltei
Preferi seguir em frente

PRECISO DE UM LUGAR PARA VOLTAR PRA CASA

Quero montar meu próprio negócio
Pode ser uma padaria, oficia mecânica ou escritório de advocacia
Será meu porto seguro
Para eu voltar quando me cansar de tudo

Estou num posto da gasolina de longa estrada
Um bom lugar para abastecer, comer alguma coisa ou esticar as pernas
Mas não é, de maneira alguma, um lugar para se morar.

Às vezes, vivo num mundo suspenso
Depois de uma longa viagem,
Voltar pra casa é o mesmo
Que acordar de um sonho e encarar a realidade

Como o ponto final de uma jornada
Sempre persigo o retorno
Mas ao chegar sofro como quem não venceu
Mas teve voltar contra sua vontade

Para ler no banheiro 2 - Bandidos

Por Marcio Ortiz Meinberg

A fila interminável de carros desmotivava João Paulo. Ficar preso em um congestionamento às 18h30 não era seu ideal de sexta-feira, mas estava tão cansado da semana que aceitava encarar a bucha.
Pela rádio AM soube que a cidade inteira estava parada. Bufou e mudou de estação na esperança de uma segunda opinião. Depois da sexta opinião confirmar o trânsito lento, sintonizou em uma FM para ouvir uma musiquinha.
Foi quando reparou que a rua transversal estava livre. Não teve dúvidas e virou. Quase derrubou um motoboy, que passou xingando e buzinando. Seguiu pela rua até a esquina. Tanto a direita, quanto a esquerda estavam paradas.
Talvez na próxima! Não dava.
Seguiu mais uma. Deveria virar à esquerda, mas ela estava congestionada, ao contrário da direita. Seguiu por essa na intenção de inventar um corta-caminho.
Em sua busca pelo atalho, se perdeu. Andava por um bairro sem congestionamentos. Ao menos isso! Parou em um posto para pedir informação. Após ouvir as confusas explicações do frentista, notou que tinha saído muito de seu caminho.
Antes de encarar a volta, preferiu passar no banheiro. Pegou a chave e foi até o lado de trás do pátio. Abriu a porta emperrada e segurou a respiração por causa do cheiro. Os olhos arderam um pouco por causa da naftalina que havia no ar.
Deixou a água da pia escorrer por uns minutos antes de lavar o rosto. Olhou-se no espelho quebrado e arrumou o cabelo. Viu a privada, mas vacilou por causa da sujeira.
Havia um rolo de papel higiênico pendurado em um fio. João Paulo enrolou a mão com um monte de papel e limpou o assento da privada. Jogou o bolo de papel no lixo e repetiu a operação mais três vezes. Depois, forrou o assento com mais papel, não sem antes dar a descarga por várias vezes.
Criou coragem, abaixou a calça e sentou-se com cuidado para não molhar a barra no chão encharcado. Fez suas necessidades.
Apoiou os cotovelos nas pernas e colocou a cabeça sobre as mãos. Respirou fundo e ficou descansando nessa posição. Apesar da sujeira, sentia-se bem naquele banheiro. Estava isolado do mundo, alheio ao trânsito e a todos os problemas. Foi quando reparou que, pela primeira vez na semana, teve descanso. Irônico, descansar em um banheiro que ele nunca entraria se tivesse outra opção.
Continuou ali descansando por meia hora, longe das preocupações. Olhou para a porta e viu o trinco se movendo. Teria trancado a porta? A porta balançou de leve e o trinco voltou à posição original. Sim, estava trancada.
Coçou a testa e decidiu ficar mais um pouco. Alguém bateu na porta.
- Tem gente – gritou João Paulo sem levantar a cabeça.
Ouviu um barulho e olhou. Alguém tentava abrir o trinco e empurrava a porta com força. Mas ela não abriu.
João Paulo resolveu sair. Levantou-se e arrumou a calça. Estava entrelaçando o cinto quando alguém voltou a forçar a porta.
- Já estou saindo! Só vou lavar as mãos.
A porta balançou três vezes até que abriu com um estrondo. Um homem mal barbeado entrou.
- Qual é o seu carro?
- Meu carro? – estranhou João Paulo – Por que quer saber?
Antes de terminar a frase tomou uma coronhada na cabeça.
Quando acordou, a cabeça doía. Um ferimento na testa ardia. Ele passou a mão e sentiu um líquido quente, devia ser sangue.
Escuro!
Onde estava? Parecia uma caixa acarpetada. Estava escuro e fazia calor. Tinha dificuldades para respirar. A caixa se movia e balançava muito.
- Mas o que é isso?
Sentiu falta de ar e decidiu gritar.
- Socorro! Socorro! Me tirem daqui!
Continuou gritando, até que a caixa parou de repente. Com o movimento, ele foi jogado no fundo da apertada caixa. Dor!
Uma tampa se abriu e a luz entrou. Viu um poste e um semáforo. Onde estaria?
O homem mal barbeado apareceu e disse:
- Tá a fim de morrer? Fica bem quieto ai!
Tomou mais algumas coronhadas e desmaiou de novo.
Dessa vez acordou sentado. O ambiente não se movia, mas continuava escuro. João Paulo estava perdido.
Tentou recapitular o dia: o engarrafamento, o posto, o banheiro e o cara mal barbeado. Então percebeu que havia sido seqüestrado! A caixa devia ser o porta-malas de um automóvel. Talvez o seu próprio.
Mas por que ele seria seqüestrado? Não era rico nem nada. O carro era de luxo, mas por que não levaram apenas ele?
João Paulo tentou se mover e percebeu que estava amarrado com alguma fita. E estava vendado.
- Alô? Tem alguém ai? Alô?
Ouviu uma espécie de gemido.
- Tem alguém ai? – continuou gritando.
- Chiu! Fica quieto! – a voz estava muito próxima.
- Não sei o que você quer de mim, mas pegou o cara errado! Por favor, não me machuque!
- Fica quieto, senão eles vão ficar bravos! – respondeu a voz.
Um barulho de passos se aproximou. Ouviu um ranger de madeira e um movimento no ar. Alguém tirou sua venda.
- Você é louco? Quer morrer?
Quando os olhos se acostumaram, reconheceu o homem mal barbeado. Estavam em um barraco. Além deles, mais algumas pessoas amarradas e vendadas.
- Escuta aqui, meu irmão! Eu não tenho nenhum problema em te matar! Fica bem quietinho ai!
- Eu não sei o que você quer de mim – disse João Paulo – Mas pegou o cara errado. Eu não sou rico, leve o meu carro.
- O carro eu já peguei, otário. Agora quero discutir o resgate. Como você parece estar com pressa, pode ser o primeiro. Levanta ai!
João Paulo obedeceu. O homem cortou a fita com uma faca e o levou através da porta até o outro cômodo do barraco. Havia um monte de televisores, aparelhos de DVD e eletrodomésticos empilhados. Em uma mesa estavam armas, alguns papelotes de cocaína e uma porção de chaves e carteiras.
O homem foi até a mesa, pegou uma chave e olhou as carteiras.
- Pela foto, essa aqui é sua.
- É.
- “João Paulo” é o seu nome?
- É.
- Coincidência! Eu também chamo assim! Por que sua mãe te deu esse nome?
- Não sei. Nunca perguntei.
- O meu é por causa do Papa. Minha mão é muito religiosa e eu nasci quando ele veio pro Brasil.
João Paulo, a vítima, ficou em silêncio. Talvez o sentimento religioso da mãe do bandido pudesse salvá-lo.
- Toma – disse João Paulo, o bandido, enquanto lhe entregava o cartão do banco – Nós vamos no caixa-eletrônico. Se der tudo certo, eu te solto em seguidas! Mas você precisa ficar bem bonzinho!
Os dois saíram do barraco. Logo ali estava um carro com dois homens encostados.
- Entra ai! Você dirige. Se fizer alguma gracinha, eu te mato!
João Paulo obedeceu.
Ligou o carro e saiu dirigindo segundo as instruções do seqüestrador. Saíram da favela e chegaram em uma avenida movimentada.
João Paulo olhava os carros em volta, na esperança de que alguém percebesse o seqüestro. Só pensava em fugir.
Distraído, não notou que o veículo da frente freou por causa do sinal vermelho. Quando percebeu, apertou o breque com toda a força e o pneu cantou. Mas não bateu por pouco.
Olhou para o outro lado e viu uma viatura. Os policiais estavam olhando para ele.
- Se você tentar alguma coisa, te mato aqui mesmo! – disse João Paulo, o seqüestrador.
João Paulo, a vítima, só pensava em escapar. Mas como? Talvez acelerando feito louco! Talvez os seqüestradores ficassem com medo de atirar nele e sofrer um acidente. Talvez a polícia percebesse...
Nada! O sinal abriu e eles continuaram. Andaram mais um pouco e chegaram no caixa. Os dois homens ficaram no carro e os João Paulo desceram.
Havia uma mulher no caixa. Será que ele ia seqüestrar a mulher? Ela saiu e foi embora.
Entraram.
- Tira o estrato.
João Paulo enfiou o cartão, pediu o estrato e digitou os números.
“Senha incorreta”.
Respirou fundo. Colocou o cartão novamente, pediu o estrato e digitou. A máquina fez uns barulhos e expeliu um pequeno papel.
João Paulo pegou o papel e leu:
- Quinhentos e quarenta e três negativo? Vai tomar no cu!
- Calma! Eu tenho dois mil reais de limite.
- Tira logo essa grana!
João Paulo colocou o cartão, pediu para sacar tudo que o limite permitia e digitou.
“Senha incorreta”.
- Você tá querendo me foder? Te mato aqui mesmo!
- Calma! Eu posso tentar até três vezes!
- Você já errou duas!
- Mas como eu acertei depois, só vale uma. Fica calmo.
Colocou o cartão, tremulo. Pediu para sacar o dinheiro e, cautelosamente, digitou.
“Senha incorreta”.
Sem dizer nada, João Paulo levou a mão à cintura e colocou-a sobre a arma.
João Paulo colocou o cartão, pediu a grana e digitou.
A máquina fez um barulho assustador e ele quase enfartou de medo. O dinheiro saiu.
João Paulo pegou a grana e contou. Foram em direção ao carro e no caminho ele falou:
- Não tem nem mil e quinhentos! Isso é pouco! Precisamos de mais!
- Mas esse é o limite!
Tomou uma coronhada e desmaiou.
Acordou sentado. Tinha as mãos amarradas por uma fita. A venda estava torta e podia enxergar alguma coisa.
Estava de volta ao barraco. Olhou ao redor e viu que outras pessoas estavam na mesma situação que ele. Todos amarrados com fita e vendados. Eram cinco homens sentados e uma mulher deitada. Parecia machucada. Será que ela tinha sido estuprada?
Só de imaginar, João Paulo sentiu um enjôo.
Ouviu passos e a porta se abriu. João Paulo parou em frente a ele acompanhado por outro sujeito mal encarado. Esse não tinha ido no carro. Devia ser uma quadrilha grande.
- E ai, xará?
João Paulo fingiu que não enxergava e que não era com ele
- João Paulo?
- Sou eu.
- Preciso de uns dados seus. Telefone de casa e informações pessoais para sua família saber que o negócio aqui é sério.
João Paulo deu as informações solicitadas e o comparsa de João Paulo anotou tudo em um caderno.
- Como vamos fazer?
- A gente leva o japonês no caixa e enquanto eu estou tirando a grana dele, você liga e pede o resgate.
- Dez pau?
- É! Começa com 10 e se não der jogo, depois a gente negocia.
João Paulo e seu comparsa soltaram o japonês e o levaram para fora. João Paulo ainda voltou e disse:
- Tomara que a sua família goste de você! Senão vou ter que te matar! – E saiu de novo.
João Paulo ficou lá quieto. Sentado sem se mover, em silêncio absoluto.
- João Paulo? – alguém murmurou.
Ele continuou quieto
- João Paulo?
- Quem é? – sussurrou de volta.
- O caixa é longe?
- Sei lá. Depende do banco.
-O seu era longe?
- Era.
- Eu consegui soltar minhas mãos. Vou fugir enquanto eles estão fora!
O homem se levantou, foi até João Paulo e cortou a fita que lhe prendia as mãos com um prego.
- Vamos lá?
- Não! Você está louco! Podem ter outros bandidos de guarda!
- Vamos lá!
- Eu não vou!
- Alguém quer ir?
Silêncio.
O homem foi até a janela, olhou e pulou. Só ouviram o som dos passos correndo no concreto.
João Paulo ficou em silêncio absoluto e se arrependeu de não ter ido. Levantou e tirou a venda. Foi até a janela e olhou. Era alto, mas dava para pular.
Ouviu passos no outro cômodo. Pareciam correr!
Voltou para seu lugar, sentou, colocou a venda e pôs as mãos para trás como se estivesse amarrado.
Um homem abriu a porta esbaforido, olhou e gritou para fora:
- Tá faltando um! Eu disse que tinha um cara fugindo! Corre lá! Vamos atrás dele!
O homem fechou a porta correndo e, pelo som dos passos, saiu correndo.
Silêncio.
Dessa vez João Paulo não ia perder a chance. Levantou e tirou a venda. Foi até a janela e olhou. Ninguém! Pulou.
Dor! Ficou sentindo pé torcido. Logo se recuperou. Não tinha tempo a perder! Levantou e correu em direção aos prédios. Saiu da favela e continuou correndo.
Depois de correr por alguns quarteirões, João Paulo estava esbaforido. Parou um pouco para descansar. Ao longe viu um carro. Correu para o meio da rua e começou a acenar.
Conforme o carro se aproximava, mas João Paulo ficava com a impressão de que o conhecia. Quando já estava bem perto, percebeu que era seu próprio automóvel. Eram os seqüestradores!
Não pagou para ver. Correu de volta para a calçada e pulou um muro. Estava em um terreno baldio. Ouviu o cantar de pneus freando.
Correu sem rumo pelo mato até que chegou em um barranco. Desceu escorregando pela escarpa até chegar no plano. Continuou correndo até a rua.
Viu um táxi, abriu a porta de trás e entrou correndo. Abaixado no banco disse ao motorista:
- Moço, você precisa me ajudar! Eu fui seqüestrado! Tem uns bandidos atrás de mim.
- O que?
- Por favor, moço! Depressa!
O taxista ficou em dúvida, mas achou melhor dirigir. Foi seguindo pelas ruas, mas como não conhecia o bairro, acabou se perdendo.
- Procure ruas que subam! Do alto podemos ver a saída! – sugeriu João Paulo.
- Não se preocupe, eu tenho um guia de ruas – encostou o táxi.
No fim da rua surgiu um carro em alta velocidade. João Paulo se encolheu com medo de serem os seqüestradores. O carro passou, olhou para o táxi e foi embora, em alta velocidade. João Paulo levantou a cabeça e reconheceu. Era o seu carro!
- São eles! Vamos para o outro lado! Rápido!
O táxi fez a volta e quando estavam indo, o automóvel de João Paulo surgiu atrás novamente. Teriam percebido?
O taxista continuou andando com o carro atrás deles. Será que perceberam? Não, senão já teriam abordado o táxi.
- Dê a volta no quarteirão!
O táxi virou à esquerda e seguiu até a esquina. Virou de novo, mas o carro continuou atrás. Virou outra vez à esquerda. De fato estavam sendo seguidos. Eles suspeitavam de algo.
- Pelo amor de deus! Vamos embora desse bairro! Procure uma avenida movimentada!
- Estou tentando! Mas estamos perdidos!
- Ali! Uma viatura!
O taxista virou na rua indicada. Era mesmo uma viatura! Estacionou atrás dela.
Quando o carro dos seqüestradores se aproximou, deu um sinal com o farol. E a viatura foi embora. João Paulo suava frio.
Vagarosamente o carro passou ao lado do táxi. João Paulo se encolheu no banco. Os homens olharam, mas não o viram. O carro se foi.
O taxista estava pálido de medo. Rodaram mais um pouco e chegaram em uma avenida. João Paulo desceu em frente a uma padaria e correu para o orelhão. Tremia. Ligou para casa.
- Alô? – voz de mulher.
- Filha? É o papai! – tremia de tensão, estava quase chorando de emoção.
- Papai! Que susto que você me deu! Acredita que ligaram aqui dizendo que você foi seqüestrado e queriam resgate de 10 mil reais?
João Paulo tremia.
- E o que você fez?
- Eu imaginei que era trote, né? E disse que você valia muito mais e que eu só pagaria se o resgate fosse um milhão de dólares!!! – e começou a rir.
João Paulo tremia tanto que deixou o fone cair.

Tarde Demais


I

Ao contrário dos demais

Ao invés de ficar com os outros

Ficava sozinha

Nos arredores do campo

 

Procurava sempre

Alguém diferente

 

Mas quanto conhecia

E sempre conhecia

Logo o novo envelhecia

 

Num belo dia percebeu

Que quem sempre procurou

Sempre esteve lá

Era quem já conhecia

Desde que conheceu

 

E sempre esteve lá

Nos arredores do campo

 

Mas depois de anos atrás

Ela já tinha desistido

Sem ter nunca o esquecido

E percebeu tarde demais


II

Ao contrário dos demais

Em vez de ficar só com os outros

Perambulava só

Nos arredores do campo

 

Procurando sempre

Alguém a mais

 

E quando conhecia

E sempre conhecia

O novo logo envelhecia

 

Até que um dia percebi

Que quem sempre procurei

Esteve sempre lá

Era você

Que eu conhecia

Desde que a conheci

 

E sempre esteve lá

Nos arredores do campo

 

Depois de anos atrás

Você já tinha desistido

Mesmo sem ter nunca me esquecido

Mas percebi tarde demais