domingo, 20 de setembro de 2009

Epifania


Numa escura noite de outono
Em frente ao hotel
A espera não deveria passar de dez minutos
Mas foi o suficiente para ver a encruzilhada

Dez anos atrás decidi seguir um caminho
Por estradas tortuosas avancei e recuei
Tentei seguir em frente
Mas esqueci para onde ia

Naquele momento percebi
Havia chegado ao destino
Exatamente um minuto atrás

Para frente não havia caminho visível
Percebi apavorado estar perdido
Deslocado como há dez anos não sentia

Compreendi que havia um novo caminho
Ainda a ser traçado
E seguir
Se essa escolha fosse minha

Em meio às reflexões
Decidi que conquistaria lugares e pessoas
E até aonde iria

A velha canção que tocava no rádio
Cujo nome não lembro ou nunca soube
E recordei de coisas que não faziam falta
Até aquele momento

E percebi
Que meu novo objetivo eram os lugares e pessoas
Que eu tive dez anos atrás
Mas que tinha deixado para chegar ao objetivo
Conquistado há um exato minuto

Meu novo rumo seria retomar tudo aquilo?
Retornar para o que não importava há dez anos atrás?

Não!
Foi quando me dei conta que há dez anos atrás
Eu não tinha conquistado lugares e pessoas
O que eu tinha ganhei apenas
E por isso não valia

O que importa não é ter lugares e pessoas
Mas conquistar lugares e pessoas

Durante aqueles dez minutos de espera
Em frente ao hotel
Naquela noite escura de outono
Retomei dez anos na minha vida
Vivi novamente os dez anos
E vivi os dez anos a partir deste ponto
Exatamente um minuto atrás

sábado, 5 de setembro de 2009

O Retificador ataca esta noite!

Por Marcio Ortiz Meinberg


Antes de se tornar “O Retificador”, P. V. (cujo nome preservaremos) era um pacato e ordeiro cidadão. De tão ordeiro, P. V. ficava indignado nas ocasiões em que ia chamar o elevador de seu prédio e algum morador do último andar tinha chamado todos os elevadores em vez de apenas um. Aquela frustração foi se acumulando dia após dia.
Numa manhã chuvosa, P. V. estava atrasado para o trabalho aguardando o elevador e os dois subiram para o último andar. Ele sentiu alguma coisa corroendo o estômago, um calafrio subiu por sua coluna e o rosto ficou quente. Toda aquela indignação acumulada gerou uma reação em cadeia e afetou a personalidade de P. V. A partir daquele dia ele deixaria de ser um pacato cidadão para se tornar “O Retificador”, o herói dos ordeiros e injustiçados!
Naquela manhã chuvosa, em vez de aguardar ressentido pela volta de algum dos elevadores, O Retificador subiu correndo pelas escadas até o penúltimo andar e apertou o botão do elevador. Desceu ao antepenúltimo andar e fez o mesmo. Desceu mais um andar e fez de novo. Quando chegou ao seu andar, aguardou pacientemente o elevador chegar, mesmo parando de andar em andar. Quando o elevador chegou, O Retificador entrou triunfante para encarar seu algoz. Dentro do elevador uma velhinha de cabelos brancos fingia-se inocente e ordeira. Missão cumprida!

A partir daquele incidente, O Retificador nunca mais foi embora. Qualquer situação de desordem gerava a reação em cadeia que transformava o pacato P. V. no destemido Retificador. Carro parado em fila dupla? Mais um trabalho para O Retificador! Vizinhos dando festa barulhenta de madrugada? O Retificador atacava novamente! Uma pessoa jogava lixo na rua? O Retificador lhe ensinaria uma lição!
Com o passar do tempo, O Retificador foi se sentido mais seguro por conta de seu sucesso e começou a agir de maneira mais agressiva... Esperava o elevador, quando ambos subiram ao último andar. Subiu correndo pelas escadas e chamou todos os andares. Voltou para seu andar e aguardou. Entrou no elevador e encarou um adolescente com boné para trás.
“Hunf! Você viu que tem um idiota que chama o elevador em todos os andares?”, comentou o incauto adolescente sem saber o risco que corria.
“Pois é. Fui eu!”
“O que? Pra que você fez isso?”
“Pra você aprender a parar de chamar todos os elevadores em vez de chamar apenas um!”
“Mas você é idiota? Perde mais tempo fazendo isso do que descendo direto!”
“Não sou idiota não, sou O Retificador! Você já foi avisado! Dá próxima vez vou arrebentar sua cara nesse espelho do elevador e deixo seus miolos espalhados para servirem de exemplo para os outros desordeiros!”
O elevador chegou ao térreo e o adolescente com boné para trás saiu correndo de medo. Naquele dia, em vez de se sentir aliviado pelo dever cumprido, O Retificador continuou enraivecido com a discussão. Foi até a estação de metrô, comprou seu bilhete e desceu às escadas rolantes. Aguardou na plataforma e entrou no trem. O metrô não estava cheio, mas muitos passageiros ao entrar paravam bem na porta, o que dificultava a entrada dos demais. Uma voz feminina avisou no auto-falando: “Facilite a entrada, não fique nas portas do metrô. Utilize o corredor”. O Retificador deu um forte esbarrão em uma senhora que estava parada bem no canto da porta do trem.
“Ei! Cuidado!”, protestou ela.
“Cuidado você! É surda? Não ouviu que tem que usar o corredor e deixar as portas livres?”, retrucou O Retificador.
Assustada, a senhora seguiu humildemente para o corredor, diante do olhar incrédulo dos demais passageiros. O Retificador imaginou que aquele olhar era de agradecimento ou admiração por seu nobre trabalho.
O metrô seguiu por algumas estações até que chegou ao ponto em que O Retificador iria desembarcar. Educadamente ele pediu licença aos demais passageiros e se dirigiu para a porta, mas quando o trem parou um grupo de pessoas estava na plataforma querendo entrar. Em vez de se espremer e sair por um dos cantos e se submeter à falta de educação daquele grupo, O Retificador encheu o peito e colocou as duas mãos na cintura, ocupando toda a área da porta. Ficou nessa pose orgulhosa enquanto o grupo que queria entrar olhava sem entender nada.
“Será que você pode dar licença? Tem gente querendo embarcar!”, arriscou um homem na faixa de quarenta anos vestindo um terno preto.
“Se vocês abrirem caminho para eu sair, talvez tenham espaço para entrar!”, respondeu altivamente O Retificador.
“Você só pode estar de sacanagem!”, retrucou uma jovem de cabelo roxo, que saiu do fundo do grupo abrindo espaço empurrando as outras pessoas e tentou passar pelo Retificador.
O Retificador se inclinou para o espaço que a jovem de cabelo roxo tentava entrar, bloqueando a passagem. Aproveitando o movimento, o senhor de terno tentou entrar pelo outro lado, mas O Retificador esticou o braço. Um homem de roupas esportivas tentou forçar a entrada também, mas foi empurrado pelo Retificador. De repente, todo o grupo tentava entrar ao mesmo tempo, mas O Retificador empurrava todos para fora e os impedia de entrar.
Eis que tocou o sinal que indicava o fechamento das portas e que metrô ia seguir viagem. Neste momento O Retificador lembrou que tinha que descer naquela estação. Então abriu passagem no meio do grupo que tentava entrar e foi empurrando todo mundo até sair do trem. Na confusão, alguns conseguiram entrar no vagão, outros caíram no chão da plataforma e uma mulher ficou presa entra as portas. Vendo o tumulto, a segurança do metrô se aproximou para ver o que estava acontecendo.
O homem de roupas esportivas que não tinha conseguido embarcar deu um soco no Retificador e o tumulto se converteu numa briga. Com muito esforço, os seguranças do metrô separaram os briguentos e iam levar os dois até a Delegacia para prestar esclarecimentos. Mas O Retificador foi mais esperto e se desvencilhou de seu captor e correu pelas escadas rolantes gritando:
“Deixe a esquerda livre! Deixe a esquerda livre! Você não viu o aviso?”
Correu para a rua e sumiu na multidão, conseguindo preservar sua identidade secreta. Assim, O Retificador continua à solta, pronto para defender a ordem contra as injustiças da sociedade! Se você for um desordeiro: tome cuidado, pois O Retificador pode estar perto de você!