sábado, 14 de março de 2009

As 3 Sombras

Por Marcio Ortiz Meinberg

Às seis da manhã, Nelson acordou sobressaltado.
Ofegante, sentou-se sobre a cama com o coração acelerado. Passou a mão na testa molhada de suor e esfregou os olhos. Sentia a cabeça doendo. Estava cansado, exausto, mas tinha perdido completamente o sono.
Levantou-se de uma só vez e sentiu o joelho. As costas também doíam. Andou dois passos pelo quarto a fim de esticar o corpo. Sentia-se tonto.
Abriu a porta e entre na saleta minúscula de seu casebre. Era um cômodo quadrado com quatro portas, uma em cada parede. Sem janelas. Num dos cantos ficava um velho sofá de madeira com almofadas estragadas. Do outro lado, uma mesa bamba apoiava um rádio velho que nunca funcionava direito. Nessa parede estava pregado um calendário de borracharia, ou oficina mecânica, com mulher nua e tudo mais.
Nelson foi até o banheiro e abriu a torneira. Esperou a água escorrer um pouco para limpar o cano enferrujado e enxaguou o rosto. Com a mão molhada, limpou o pó que sujava o espelho quebrado com cuidado para não se cortar. Olhou para o seu reflexo. Viu seus olhos vermelhos, a barba esbranquiçada por fazer, o papo saliente que começava a surgir com a idade. Apesar de ralo, cabelo está desgrenhado e precisava de um pente. Como não dispunha disso no momento, apenas se penteou com as mãos molhadas.
Sentiu a garganta seca raspando.
Saiu do banheiro e entrou na porta ao lado da mesa bamba. Estava na cozinha. Abriu a geladeira e pegou uma garrafa sem rótulo que continha água. Bateu a porta da geladeira, que não fechou por causa da borracha gasta. Nelson colocou a garrafa sobre uma mesa redonda branca e pressionou a porta da geladeira até que fechasse. Num armário suspenso de madeirite pegou um copo de requeijão que havia sido reutilizado e encheu de água.
Bebeu tudo em um só gole.
Em um pequeno cesto pegou um pão velho e começou a comer.
Depois de comer, tomou mais um copo d’água e guardou a garrafa na geladeira. Novamente teve de pressionar a porta para que fechasse.
Voltou para a sala em passos arrastados e saiu pela porta maior, que dava para fora.
Foi ofuscado pela luz do sol, que brilhava no céu apesar de enevoado. Nelson andou pelo pátio de terra laranja irritado com os latidos histéricos de um cachorro. Foi até o matagal no terreno baldio que ficava ao lado de seu casebre e gritou algo como “passa!” ou “chispa!”.
Os latidos histéricos continuavam. Entre eles, Nelson reconheceu os latidos roucos de seus dois cachorros. Deviam estar protegendo o território de um cão intruso.
Os latidos ressoavam na cabeça de Nelson, que doía. Fora da casa estava mais quente do que dentro. Resolveu entrar.
Virou-se para a casa e começou a andar. De repente, o matagal do terreno baldio se transformou em uma selva tropical. Nelson parou de andar e mesmo de costas, podia sentir que o clima ficara muito mais quente e úmido.
Ouvia claramente os sons dos bichos e das plantas típicas da floresta amazônica. Um mosquito veio zunindo próximo de seu ouvido e picou seu pescoço. Ele deu um tapa no pescoço tentando impedir o inseto de sugar mais sangue.
Cautelosamente virou-se e encarou a selva recém-surgida no terreno vizinho. Engraçado, já tinha estado ali antes...
Via claramente um grupo de pessoas andando fora da trilha. Eram dois homens e uma mulher. Estavam maltrapilhos, disfarçados como caboclos nativos da região. Um dos homens estava ferido e sua perna sangrava. Os outros dois o auxiliavam a caminhar.
A mulher vestia um chapéu de palha e trazia a tiracolo um rifle maior do que os que traziam os outros dois.
Nelson ouviu passos e olhou bem para o fundo da selva, foi quando viu a patrulha de soldados. Todos maltrapilhos. Tinham um caboclo como guia.
Nelson via claramente os três fugitivos e a patrulha, mas eles não se viam, pois estavam longe uns dos outros. E não viam Nelson, porque ele não estava lá.
Os dois homens e a mulher conseguiram descer um barranco até um ribeirinho. O ferido aproveitou para beber água. A mulher encheu um cantil e os três aproveitaram para descansar.
Foi quando a patrulha dos soldados apareceu no topo do barranco.
Nelson ficou lá parado em pé assistindo ao dramático combate.
Os sons dos disparos secos e quase ritmados dos rifles apenas eram quebrados pelos ecos das rajadas das metralhadores.
A diferença numérica entre os dois grupos era gritante.
De repente, dois cachorros saíram de dentro da selva e correram na direção de Nelson. Um calafrio subiu por sua espinha. O combate desapareceu e a selva voltou a ser o matagal do terreno baldio.
Nelson se abaixou e acariciou os cachorros.
- O que que vocês tavam latindo?
Os dois vira-latas abanavam os rabos. O preto e maior dos cães olhava para o dono com a língua de fora. O menorzinho e bege também ficou com a língua de fora, encarando o dono. Mas não responderam.
Nelson suspirou. Procurou um maço de cigarros amassado no bolso. Colocou um cigarro torto na boca e acendeu com um fósforo. Deu dois ou três tragos e jogos no chão.
Tossiu.
- Malditos cigarros vagabundos!
Continuou andando pelo pátio de terra laranja. Olhou para o céu de nuvens sujas e ficou incomodado com o calor logo cedo. Estava quente e abafado. A tarde ia ser pior. Não chovia há muito tempo.
Um menino de dez anos apareceu no pátio. Usava uma camisa velha de algum time de futebol desconhecido. Estava suja e furada. O garoto descalço se aproximou de Nelson com olhar curioso.
Nelson gostava de ficar sozinho com seus cachorros. Aquele menino era uma das poucas companhias que apreciava.
- Oi – disse o pequeno.
Nelson ficou em silêncio, acariciando o cachorro bege.
- O seu rádio voltou a funcionar.
- Não – respondeu Nelson.
- Precisa concertar, né?
- Acho que a pilha acabou. Se for assim, não precisa concertar.
- Onde você compra pilha?
- Na cidade deve vender.
- Mas você nunca vai na cidade. Como vai comprar?
- Eu posso resolver ir, um dia desses.
- Se você quiser, eu vou pra você! – o garoto pareceu se animar com a idéia – Gosto de ir na cidade!
- É...
- Sem o rádio, não vai dar pra saber dos jogos de futebol!
Nelson ficou em silêncio e percebeu que um homem veio da estradinha em direção à casa. Ele achou que era algum conhecido, mas quando o estranho chegou perto, viu que não sabia dele. Mesmo assim, o rosto era familiar.
- Olá, moço. Desculpe aparecer aqui a essa hora, mas eu preciso de uma ajuda.
O menino se aproximou de Nelson e disse:
- Acho que ele não é daqui.
- Não sou mesmo. Na verdade moro na capital e estou hospedado numa casa perto do riacho.
- Meu pai mora perto do riacho. Ninguém mais mora lá perto!
- Ah, é? Onde está seu pai, garoto? – o homem fez a pergunta encarando Nelson, como se esperasse que ela a respondesse.
O menino se moveu para trás de Nelson, ficando protegido por suas pernas.
- Olha, moço, você disse que tinha um problema – disse Nelson apreensivo – Como posso ajudar?
- Ah, claro! Eu estava consertando o telhado da casa em que estou hospedado e precisava de uma escada. Você não teria uma pra emprestar?
- Hum! – Nelson fez uma cara de pensativo.
Andou um pouco pelo pátio de terra laranja e voltou até o estranho.
- Olha, moço, escada eu não tenho, mas atrás da minha casa tem umas tábuas que podem servir para você subir no telhado. Basta pregar uma na outra e sai uma boa escada improvisada.
Dessa vez foi o homem que fez uma cara de pensativo. Parecia desconfiado, como se achasse que era mentira. Nelson ficou incomodado com a expressão do rosto do forasteiro. Será que ele duvidava dele?
O homem andou pelo pátio de terra laranja e deu a volta na casa. Examinou as tábuas e separou algumas.
- Eu tenho um martelo em casa – disse Nelson
- Será que você pode trazê-lo aqui?
- Claro – respondeu baixinho enquanto voltava para casa.
Depois de procurar e achar o martelo. Nelson foi até os fundos da casa e entregou-o ao estranho.
O homem estava conversando com o garoto. Junto a eles estava um cachorro amarelado e bem magro. Deve ter sido o animal que provocou a latição pela manhã. O menino parecia ter gostado do cachorro.
- Qual é o nome dele? – perguntou o garoto.
- Não tem nome.
- Posso dar um nome?
- Pode, mas se eu não gostar ele vai continuar sem nome.
- Posso ficar com ele?
- Não. Ele terá que ir comigo. Ele é que protege a minhas coisas.
O homem percebeu a sobra de Nelson e se levantou.
- Obrigado pelo martelo e as tábuas, moço. Na minha casa tenho pregos. Vou até lá terminar o serviço.
- Você vai levar o martelo?
Não se preocupe, eu já o trago de volta.
O forasteiro notou que Nelson não ficou muito satisfeito em deixar o martelo ir.
- Então espere aqui. Eu vou buscar os pregos e faço o serviço aqui mesmo. Assim não preciso levar o martelo.
Nelson respondeu ficando em silêncio. O homem seguiu pela estradinha de terra por onde tinha vindo e sumiu após passar por umas árvores.
- Você está bem?
Olhar distante.
- Você está bem?
- Ãh? Claro – disse Nelson ao garoto.
- Você está com uma cara estranha.
- É que eu lembrei do meu pai
- Aquele moço parece seu pai.
- Não. Nem um pouco. Mas a visita dele me lembrou do meu pai.
O menino ia perguntar como a visita lembrou de seu pai, mas logo o estranho voltou com os pregos.
O homem se pôs a trabalhar enquanto era observado atentamente por Nelson e pelo garoto. Martelou bastante e pregou duas tábuas a uma terceira. Ficou como uma espécie de banco.
O sujeito colocou as tábuas marteladas em pé e subiu em cima para ver se estava firme. Tremeu um pouco e bambeou, pois uma perna era maior que a outra.
Nelson não gostou daquilo. Parecia serviço mal feito.
- Não sei se ficou bom – disse.
- Por que não?
- Sei lá! Fico preocupado.
- Tem alguma coisa errada? Prefere fazer você mesmo?
- Não, não tem nada errado. Apenas fico preocupado.
- Se não há nada de errado, não é preciso ficar preocupado.
A resposta era lógica. Nelson aceitou aquilo e esqueceu o assunto.
- Obrigado pelo martelo e pelas tábuas, moço – disse o estranho entregando o martelo nas mãos de Nelson – Sua ajuda foi muito importante.
- De nada. Qualquer problema pode vir aqui pedir ajuda.
O homem ficou quieto por uns instantes, como se não tivesse entendido o comentário, ou como se procurasse uma resposta adequada para dar.
- Espero não ter que voltar aqui.
Nelson achou bom que o forasteiro não pretendia voltar. Na verdade, só tinha falado aquilo por educação. Não que tivesse algo contra ele, na verdade nem o conhecia. Nem pretendia. Acontece que Nelson gostava de ficar sozinho com seus cães. Por isso morava naquela cidadezinha tão pequena, tão longe de tudo.
- Seu Nelson, você conhecia esse moço? – perguntou o garoto
- Acho que sim.
- Você não sabe se conhece?
- Não tenho certeza.
- Como ele pode morar perto do riacho se não tem casa por lá?
- Não sei
- Por que na hora que ele não foi na direção do riacho? Ele foi pro outro lado!
- Talvez fosse outro riacho – respondeu coçando a cabeça.
- Mas não tem outro riacho por aqui!
Nelson suspirou e concordou silenciosamente com um movimento de cabeça. Seu rosto carregava uma expressão melancólica.
Algumas galinhas apareceram por no pátio. O garoto saiu correndo atrás delas. Parecia já ter doze anos.
As costas de Nelson voltaram a doer. Entrou em casa e sentou no sofá velho de almofadas estragadas. Tentou ligar o rádio, mas só havia estática.
Deixou ligado e foi para a cozinha. Aproveitou alguns restos de comida que havia na panela e esquentou uma refeição. Comeu o alimento gordurento e sem gosto. Lavou a panela e as louças da pia. Deixou tudo de molho e voltou para a sala.
O rádio continuava a tocar estática num chiado bem baixinho. Mexeu na antena cm esperança de conseguir algo.
Nada! Desistiu.
Desligou o rádio e foi até o calendário colado na parede. Ficou olhando a modelo pelada do cartaz, que parecia posar em uma oficina mecânica, ou borracharia. Procurou uma caneta e marcou o dia oito de outubro de 1973.
Ficou olhando a data do cartaz. O dia estava certo? Sim, era o dia oito de outubro. Mas o ano estava certo? Seria oito de outubro de 1973? Não tinha mais certeza.
Quando acordou hoje cedo, Nelson sabia e tinha certeza que o ano era 1973. Agora não tinha mais.
Guardou a caneta no baú do quarto onde ficavam alguns livros velhos. De repente estranhou o silêncio do lado de fora. Os cachorros, em geral tão barulhentos, estavam numa quietez absoluta.
Foi de novo para o pátio. Caminhou um pouco, chamando pelos cachorros, mas eles não atenderam. Ficou em silêncio tentando ouvir os latidos.
Nada! Apenas silêncio.
Foi andando em direção à pequena estrada de terra. Desceu a rua assobiando.
“Rua”! Se aquilo pudesse ser chamado de “rua”! Mais parecia uma picada circundada por um fechado matagal. A sofrida mata estava ressecada pela aridez da estação das secas.
Continuou pela “rua” sinuosa que descia.
O sol ainda estava mais forte. Uma breve brisa o refrescou por um instante, mas logo se foi e o calor voltou.
Parou de assobiar e continuou pela “rua” torta. Os cachorros haviam desaparecido.
Será que tinham cansado dele? Teriam encontrado uma casa com mais comida? Com um dono mais amoroso?
Talvez. Da mesma forma que eles chegaram – de repente, um depois do outro – poderiam ter ido embora, juntos.
Tentou mais uma vez chamar os cachorros.
Nada! Apenas a brisa que bateu um pouco mais forte.
De uma trilha no meio do mato o garoto apareceu de novo.
- Você viu meus cachorros?
O garoto ficou olhando para ele em silêncio. E respondeu bem baixinho, quase inauditível:
- Não...
Mais uma vez o vento balançou os galhos secos. Nelson assobiou e gritou pelos cachorros, mas o garoto o puxou pelo braço e disse bem baixinho:
- Não pode fazer barulho!
Os galhos se moveram com o vento e estalaram.
- Eu preciso encontrar os cachorros – respondeu Nelson enquanto descia a rua chamando pelos cães.
- Não pode fazer barulho! – repetiu o garoto. Seus olhos pareciam tremer, como se estivesse com medo.
- Por que não pode fazer barulho? Preciso encontrar os cachorros!
- Foi o homem que disse!
- Que homem? O que apareceu de manhã?
- Não – o garoto respondia com um tom de voz tão baixo que Nelson mal podia ouvir.
- Então quem foi? Diga!
O menino olhou para os lados como se procurasse algo. Estava claramente assustado. Aproximou-se dele e, como se revelasse um segredo proibido, sussurrou:
- Foi o homem de verde...
- Homem de verde?
O garoto ficou encarando, sem dizer uma palavra. Teria 14 anos? O menino se virou, correu e sumiu no mato.
Nelson pegou o maço amarrotado e, com um fósforo, acendeu um cigarro torto. Continuou descendo a rua. Assobiou e gritou pelos cães. O matagal respondeu com mais silêncio.
O mato foi diminuindo e a estradinha foi ficando mais larga. Até que o mato desapareceu e Nelson estava num imenso e ensolarado descampado. Uma lufada abafada levantou a poeira laranja do chão e irritou seus olhos. Ele lacrimejou e os esfregou com cuidado. O vento parou e a nuvem de poeira se assentou de volta ao chão.
Nelson continuou andando pelo descampado enquanto chamava os cães e assobiava. Parou ao lado de uma árvore retorcida e tossiu engasgado com a fumaça do cigarro vagabundo.
- SILÊNCIO!
A voz surgiu do nada e se impôs imperativa. Nelson tossiu de novo.
- Não pode fazer barulho!
Nelson olhou ao redor e do lado da árvore estava um homem de porte atlético. Vestia uma jaqueta e calças verdes.
EU MANDEI FAZER SILÊNCIO!
Sem entender nada, Nelson disse:
O que? Por que tem que fazer silêncio?
VOCÊ É SURDO?
Não, eu só queria entender...
Então, CALA A BOCA!
Nelson ficou em silêncio encarando o homem de verde. Olhou bem nos olhos dele e sentiu a respiração.
EU MANDEI FICAR QUIETO!
Ele continuou em silêncio, olhando para o homem
Nelson sentiu o vento forte. O ar subiu por suas pernas, trazendo mais poeira. Quando o vento balançou seu cabelo, uma nuvem laranja cegou sua visão. Voltou a enxergar sentindo os olhos ardendo, um gosto de terra na boca e dificuldades para respirar.
O homem de verde havia desaparecido. O garoto também. Não havia sinal dos cachorros.
O sol estava mais fraco. Brilhava no horizonte concedendo um tom róseo ao céu. Algumas nuvens escuras surgiam ao longe.
Nelson desistiu dos cachorros e resolveu voltar para casa. Iniciou seu retorno pelo descampado, sendo seguido pelo vento. Continuou pela rua enquanto o matagal voltava a se fechar.
O mato não estava calmo como na vinda. Os galhos balançavam agitados. O vento realmente estava forte e a mata se movia como se estivesse viva.
Nelson saiu da estrada próximo de sua casa. Foi quando o silêncio se instalou de novo. O vento ficou totalmente quieto. Tudo parado. Nem uma folha se movia. Ele parou e escutou.
Ao longe ouvia um farfalhar. O som, único, correu em sua direção e deu a volta no terreno. O matagal se agitava pelo som, que se aproximou rapidamente. E cercou Nelson. O vento forte balançava tudo. Então começou a chuva.
As gotas grossas caíram sobre o homem, a terra e o mato. As nuvens escureceram por completo o céu poente.
Em poucos momentos Nelson já estava encharcado. As chuvas vieram. Mas já era época de chuvas? Não seria estação das secas? Nelson nem sabia mais que dia era. O cheiro de terra molhada subiu pelo ar, misturado com o mato.
Nelson saiu correndo, tropeçando nas enormes poças de lama. Chegou em casa todo molhado e sujo. Entrou na sala e tirou os trapos encharcados. Se enxugou com um pano velho e vestiu uma bermuda velha. A chuvarada fazia um enorme barulho do lado de fora.
A violência com que as gotas batiam na telha produzia um forte chiado. O vento balançava as portas e janelas.
De dentro do quarto saiu o garoto. Dezesseis?
- Seu Nelson, a casa tem goteiras!
A presença do garoto na casa era estranha, mas ele estava certo: a casa tinha goteiras. Nelson foi até a cozinha e pegou algumas panelas. Espalhou pela sala nos locais em que a água caia.
Um som metálico das goteiras nas panelas se somou ao chiado da chuva que vinha de fora.
Por instinto, Nelson olhou a paisagem escura da janela. Um relâmpago clareou a cena e iluminou o rosto do vulto que observava do lado de fora.
Uma terrível dor, misturada com um calafrio abalou Nelson enquanto o trovão rugiu. O vulto desaparecera.
Tremulo, Nelson sentou no sofá. Respirava com dificuldade. A porta balançou violentamente. Ele teve medo de olhar.
De repente abriu.
Do lado de fora, imóvel, o vulto olhava para ele enquanto era momentaneamente iluminado pela luz branca de um raio.
Nelson rezou para que ele desaparecesse nas sombras como fizera antes.
Mas, quando o trovão rugiu de novo, ele ainda estava lá.
Entrou na sala. Encharcado, molhou todo o chão.
O homem saiu pela porta e deixou uma enorme poça d’água no chão.
Nelson tremia. Estava encolhido no sofá. A chuva continuava castigando as telhas. O matagal se movia ameaçadoramente.
Do quarto surgiu o garoto. Dezessete anos? Saiu pela porta sem fazer um ruído. Ignorou a presença de Nelson.
O garoto seguiu em direção à estrada e a cada passo ficava mais velho. Parecia não se molhar.
Seu cabelo cresceu vagarosamente até os ombros e, de repente, diminuiu até ficar raspado.
Um jipe parou e ele entrou. Sumiram na estrada.
Nelson tremia no sofá. Olhava pela porta aberta a chuva lá fora. Encolhido em posição fetal, ele chorou.

Nenhum comentário:

Postar um comentário