domingo, 1 de novembro de 2009

Na Corte do Czar

Por Marcio Ortiz Meinberg

A nota aguda que saiu do violino ecoou pela sala de concertos deserta. Do alto do palco, o Músico observava a sala vazia e aquele som despertava nele a recente lembrança do espetáculo recém apresentado. A sinfônica tinha sido magistral e a performance do maestro fora memorável.

A sala de concertos era lindíssima, pois fora construída toda em madeira em uma clássica estação de trem. O contraste da madeira polida com o mármore branco e preto dava um efeito todo especial. Aquela fora uma noite de gala e, assim como os músicos, os espectadores compareceram à rigor. Os homens com suas feições graves vestiam ternos feitos sob medida e gravatas importadas. As mulheres em vestidos exagerados, com xales, peles e jóias extravagantes não perderiam em estilo para a Cruela dos “101 Dálmatas”. Aquela gente naquele lugar era a própria representação da aristocracia russa às vésperas da Grande Revolução de 17.

O Músico guardou o violino, soltou a gravata borboleta, lançou mais um olhar para a sala de espetáculos vazia, pegou a valise e saiu. Naquela noite ele estava sem carro e, por ter saído mais tarde, não havia qualquer táxi à vista. Ele poderia tranquilamente solicitar ao porteiro que ligasse para um motorista da região, mas em vez disso e sem qualquer razão o Músico preferiu sair caminhando.

Vale lembrar que a sala de concertos era uma pérola encravada no meio do bairro conhecido como “cracolândia”. Repleto de comércios decadentes e prédios abandonados, aquelas ruas tristes eram o refúgio de mendigos, crianças de rua, drogados e traficantes. Mesmo de carro as pessoas evitavam passar por lá durante a noite com medo de assalto. Até as viaturas raramente circulavam. Talvez por isso a idéia do Músico ir embora à pé fosse tão estranha ao porteiro, porém como em toda metrópole as pessoas cuidam apenas da própria vida.

O Músico seguiu pela garoa naquela noite escura com sua valise em mãos no meio dos sacos de lixo espalhados pela calçada. Debaixo de uma marquise dormiam pelo menos dez pessoas enroladas em cobertores imundos. Um dos raros carros passou velozmente tentando pegar o semáforo aberto e atirou a água de uma poça sobre os sapatos lustrosos do Músico.

Mais adiante, em um dos poucos trechos iluminados da rua havia um pequeno boteco em que tocava um pagode de corno. Ao passar em frente ao bar, o Músico chamou a atenção de um sujeito mal-encarado que certamente era um traficante. O mal-encarado se posicionou às portas do botequim pensando que se tratava de um cliente, mas o Músico seguiu adiante com seu passo apressado.

Ao cruzar uma esquina o bairro começou a se transformar e, em vez de prédios abandonados e comércios decadentes, aquelas ruas continham apenas comércios decadentes. Em vez de mendigos e usuários de crack, aquelas ruas estavam repletas de prostitutas e travestis. Mesmo assim, as calçadas continuavam cheias de lixo espalhado.

O fluxo de carros era sensivelmente maior. Alguns paravam para um programa, mas a maioria apenas passava rapidamente. De alguns deles partia um xingamento ou provocação proferido por algum grupo de garotos recém-habilitados.

Além dos botecos, começavam a aparecer “inferninhos”, fossem bordéis ou boates de baixo nível. A quantidade de pessoas transitando nas calçadas era maior. Alguns jovens esquisitos com cabelos e roupas esquisitas. Alguns moderninhos e coloridos, enquanto outros trajavam visual “retrô”.

Em frente a um casarão decadente com janelas quebradas e pintura descascada se aglomerava um grupo de jovens bastante eclético. Cabelos espetados ou raspados, roupas de couro preto ou jeans rasgados, rebites e correntes, brincos ou piercings. Da janela tremulava uma luz branca intermitente. Ao fundo escorria um som grave e repetitivo.

O Músico entrou e seguiu pelos cômodos da casa. Era uma festa e estava lotada, mas o público era tão esquisito que nem estranhou a presença de um sujeito trajado à rigor portando uma valise de violino. Seguiu por um corredor olhando os quartos sem entrar. No primeiro um grupo conversava animadamente sentado no chão enquanto dividia um baseado. A música era eletrônica e grotesca, misturada com rock pesado da pior qualidade. Não se podia dizer que o vocalista cantava, mas grunhia.

Em outra sala outro grupo assistia um filme alternativo que era projetado na parede. O som gutural impedia que ouvissem o filme, mas mesmo assim eles prestação atenção. No final do corredor havia uma porta para o quintal.

Era um pequeno pátio descoberto e cercado por paredes altas. Em uma delas havia uma elevação que servia de palco. Um grupo de quatro desajustados tentava tocar punk rock sem muito sucesso. A pequena multidão do pátio não parava de xingar e fazer gestos obscenos para a banda.

Um tênis velho foi arremessado e o grupo desistiu de tocar. Antes de descer, o vocalista aproveitou para retribuir os xingamentos e palavrões proferidos anteriormente. Por alguns minutos o palco ficou vazio, mas uma música tocava no aparelho de som em volume ensurdecedor.

Três adolescentes subiram no palco. Destoavam dos demais por usarem bermudas e camisetas. O mais velho, de barba rala, sentou-se na bateria. O cabeludo pegou uma guitarra. O que tinha cara de mais novo, com o rosto cheio de espinhas, pegou o contrabaixo e posicionou-se em frente ao microfone.

Extremamente bem entrosado, o trio tocou um veloz hardcore que levou o público ao delírio. Alguns balançavam a cabeça repetidas vezes e tentavam imitar os movimentos da guitarra, outros davam socos para trás de maneira descontrolada. O jovem Baixista cantava com sua voz fina em inglês impecável.

Um jovem mal-encarado com cabelo moicano e uma jaqueta cheia de rebites prateados entrou na roda pulando e agredindo os demais. Dava socos aleatoriamente. Em poucos segundos ele foi jogado para fora da roda com o nariz sangrando. Achou melhor ir embora do que revidar.

O trio tocava enfurecidamente e animava a pequena multidão. O sincronismo dos três era perfeito. Até que houve um estalo na caixa de som da guitarra. O cabeludo deu um grito, atirou a guitarra e caiu no chão convulsionando. Levara um choque elétrico. Apenas um susto, nada muito grave. Ele estava bem, mas não iria mais tocar. A multidão silenciosa e triste se entreolhava ofegante. O Baixista e o Baterista perguntavam se havia algum guitarrista disposto a terminar a apresentação. O desajustado da banda anterior se ofereceu, mas foi vaiado até desistir. Levou um tênis na cabeça. O pátio estava quase silencioso, as pessoas apenas sussurravam.

Foi quando o Músico decidiu ir até lá. Subiu no palco, colocou a valise do violino no chão, pegou a guitarra caída e perguntou para o Baixista:

“Você conhece surf music?”

“Misirlou?”

O Músico começou a tocar a trilha sonora do filme “Pulp Fiction” e foi acompanhado pelos outros. Novamente o público se animou e dançava freneticamente. Entre uma música e outra, o Baixista desatarraxou a lâmpada que ficava sobre o palco. Sem sua única luz, o pátio estava iluminado pela lua cheia. A multidão dançava dando socos para trás. Parecia uma luta campal, mas os movimentos eram quase combinados e ninguém acertava os demais, pelo menos não em cheio.

O Músico tocou todas as músicas de “Pulp Fiction” e após isso o trio deu lugar à próxima banda. Antes que o Baixista pudesse agradecer, o Músico já tinha desaparecido. Misteriosamente, tal qual sua chegada.

Dele só ficava a lembrança. E a valise do violino esquecida no fundo do palco improvisado. Até o final da madrugada aquela pequena multidão já teria esquecido da apresentação e nunca seria feita uma associação entre o violino esquecido e o misterioso guitarrista fã de surf music e Tarantino.

Um comentário:

  1. Adoro seu blog literário! "Pagode de corno" foi o melhor, rs.
    Mas os meus preferidos são seus poemas. Fazia tempo que não entrava no blogspot, só agora li o último, de setembro. Amei.
    Bjs, Gabi.

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